23 de ago. de 2006

Metamorfose

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Metamorfose
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O olhar da menina
Passou pela mãe
Passou pelo pai
Pela luz do abajur
E se perdeu no emaranhado de plantas
no fundo do aquário .
Agora , ela é peixe ...
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Leonor Cordeiro
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14 de ago. de 2006

Para Julie ...

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IMAGEM
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O gato apareceu de repente na montanha. Era um pobre bichinho débil, que miava silêncio. Preto, parecia cinzento – de tão sujo. E, além de sujo, maltratado, com um olho desfazendo-se em gelatina, e uma orelha empapada de sangue. Olhou para mim tristemente, como nós às vezes olhamos para Deus . E eu, certamente, queria ajudá-lo .
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Mas então vi como aquele caminho deserto se fazia subitamente povoado; o espírito das superstições dizia-me : “olha que é um gato preto!” E o espírito da ciência murmurava-me : “Está cheio de parasitas, que te infestarão !” E esse vil espírito prático da era contemporânea aparteava : “Ademais, como podes ajudar, se estas num caminho deserto e sem recursos, onde não se avista nem um teto nem um veículo?” E só o espírito do amor segredava tímido: “Toma-o nas mãos e leva-o contigo ! Verás que, no teu colo, seus olhinhos lacrimosos se fecharão, adormecidos; sua fome se esquecerá, suas feridas fecharão ...” Mas o espírito do amor segreda com tanta timidez!
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Pela montanha deserta, descíamos os dois, e subia o vento.Pobre gatinho preto, de cauda arrepiada como uma escova de lavar frascos ! Manquejava também de um pé. Tão ralo tinha o pêlo que se lhe viam luzir as pulgas sobre os arcos das costelas. Na orelha machucada, o sangue secara-lhe como uma florzinha vermelha, muito escura.
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Tão grande era a sua urgência de socorro, que, embora trôpego, pequenino, doente, às vezes caminhava mais depressa do que eu. Ia esperar –me adiante, e levantava para os meus os seus olhos sofredores e o vazio miado, que era, a cada instante, como o seu último sopro.
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Mas, quando me via chegar, punha de lado a sua fadiga e o seu descanso, e recomeçava o caminho, com uma espécie de fé sempre renovada de peregrino que se dirige ao lugar da salvação .
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Na montanha , porém, não havia salvação nenhuma para quem padecesse de fome ou sede. A assembléia dos espíritos que me rodeavam buscavam pôr-se de acordo, sem satisfação: as pulgas eram inegáveis – dizia o espírito científico; o da superstição contradizia-se , de tão rico: às vezes os gatos pretos dão sorte ...; o espírito prático, o vil espírito de tempo, mostrava-me com uma clareza de relatório oficial que gasolina não existia, e a primeira venda devia estar, tanto para uma lado, como para o outro, a um bom quilômetro, pelo menos. Só o espírito do amor segredava que tudo isso eram conjecturas idiotas, e que devia tomar nas mãos o pobre bichinho abandonado e leva-lo sobre o calor do meu peito até um lugar qualquer onde o sentisse , afinal, protegido e consolado .
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E o gatinho trotava, ora atrás de mim, ora na minha frente. Parecia impossível que pudesse pular assim, tão magrinho, tão seco, tão altimoso. Mas pulava . Se não fosse o aspecto que tinha, dir-se-ia que brincava, que brincava como uma cavalinho caprichoso num circo de elfos. Umas duas vezes prendeu a perna no ralo da sarjeta. Daí em diante, fez-se mais cauteloso, evitando-as, quando as encontrava . E tudo isso dava graça à companhia, como quando se descobrem as novidades de uma criança. Mal, porém, se reparava no seu esqueleto no ofego de seu tórax, e naquela umidade de seus olhinhos nublados, vinha um aperto ao coração – eo grande céu , a verde floresta, o ouro do Sol derramando-se pela estrada, o mundo e as criaturas tornavam-se enigmáticos, ferozes e inúteis .
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O espírito do amor segredava-me, cada vez mais tímido : “Vê como tem acompanha. Como poderás dormir tranqüila sem teres socorrido o miserável que pediu o teu auxílio?” E o espírito da superstição murmurava: “Isto é para que não te esqueças que deixaste de ser caridosa, um dia. Aqui anda uma aviso do ultramundo, sob a forma de um gato preto !” E o espírito científico replicava com uma insolência de dezoito anos: “Qual ultramundo ! Isto é apenas um gato sem casa, maltratado pelo vadios, e que vai atrás de ti por instinto, procurando alimento e sossego” . E o tal espírito prático se arreliava :”Onde estão os hospitais, para os bichanos que ninguém quer? Que há de fazer uma pessoa num caso destes? As pulgas estão ali, evidentes; a gasolina positivamente não está em lugar nenhum . Ninguém pode andar sempre com um sanduíche no bolso e uma garrafa de leite embaixo do braço .... E ainda esta carga de preconceitos morais ! ...” O espírito do amor segredava entristecido : “Não deixes teu coração endurecer com o que estás ouvindo ... Faze alguma coisa por este pobre animal que te segue arquejante. Lembra-te se algum dia fosse atrás de alguma coisa que fugisse, fugisse.... Reflete que algum dia poderás ir ...” E volvia o espírito científico: “Mas um gato, afinal de contas, não é gente. E o sofrimento do amor suavemente insistia ; “Tudo é um sofrimento só, de alto a baixo, na criação . Compadece-te desse que te acompanha, pequena coisa que o destino pôs no teu caminho, problema que o mundo inteiro está vendo como resolverá ...”
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Então, ao meio dos espírito sentei-me. E o gato parou diante de mim, com a hirta cauda par ao lado, uma orelhinha murcha, e outra em pé. Seus olhos chorosos não tinham voz humana : puro choro. E sua boca pálida arreganhou-se num miado sem som: piro bocejo. Aquietou-se mirando-me. E agora um velhinho muito velho, emalhado em lã cinzenta, lacrimejando de velhice e de experiência. Observava-me , sem dizer mais nada, sem pedir nada. Sua sombra não media um palmo; minha sombra não mediu um metro. A sombra das árvores era imensa e balançava-se no chão, misturando estrelinhas de ouro. Trinavam pássaros, algo e longe. A montanha subia, subia . Quanto caminho andado! E aquele pobre bichinho descera-o todo atrás de mim, tão magrinho, tão infeliz, alternando as perninhas trôpegas , e chamando-me com sua voz desaparecida .
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Por que não nascem entre as pedras arroios de leite par aos gatinhos abandonados? Ah! Irmão Francisco, os lírios andam vestidos de seda, e os passarinhos por toda a parte encontram grão que os sustente, mas os gatinhos, bem vês, não tem rato que se distraiam e o transeunte humano nem o poder socorrer nem explicar .
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Passará talvez um leiteiro com algum carrinho. Vai batendo uma sineta melodiosa como um anúncio de festa. E eu lhe direi: vende-me meio litro de leite para esse bichinho abandonado... E o leiteiro será como um pastor antigo, que sobe para a sua serra onde tem ovelhas peludas e mansas, e me dará leite e queijinhos brancos e tenros, que todos comeremos à sombra das árvores, numa intimidade casta de écloga. O gatinho se lamberá todo com uma língua novinha, rósea que nem coral, e sorrirá agradecendo, e terá forças para trincar aquelas pulgas que passam como miçangas pelas suas costelas, e depois, limpo e refeito, brincará, para vermos, de pegar a sua sombra, de saltar ao tronco das árvores ou de morder a ponta da sua própria cauda.
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E o leiteiro dirá: “Ide , senhora, que o levo comigo, para entreter os meninos da minha granja. “ E as árvores se inclinarão, cheias de pássaros e flores, e o gatinho irá pulando serra acima, enquanto o leiteiro, pra o divertir, cantará uma cantiga engraçada sobre a vida das ratazanas ...
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Mas o leiteiro não aparecia. Pensei que ele acabasse por adormecer ali sentado, pois seus olhos ficavam cada vez mais pegajosos e seu focinho de ancião freqüentador de arquivos tomava um ar cada vez mais resignado e desistido. E eu lhe dizia: “meu amigo, não sei qual é a venda mais longe: se a lá de cima, se a lá de baixo... Como vais resistir a caminhar mais do dobro do que até aqui andaste?"
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E o espírito do amor implorava: “Toma-o no teu colo!” E lembrei-me da amiga que apanhou um gatinho assim à porta do cinema e levou-o para a casa de chá, escandalizando todas as senhoras enchapeladas que comiam sem fome, carregadas de balangandãs. E os espelhos em redor viram descer para o gatinho um doce das mil e uma noites, pura nata e massa folhada, onde a fome do desgraçado se perdia num delírio de suavidades brancas, num êxtase de manteiga e baunilha .
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Mas nenhum pássaro trouxe no bico o milagre necessário ao gatinho preto. De nenhuma árvore caiu esse milagre suspirado. Pedras, Sol, troncos, formigas. Nem água! – nem água brilhava em nenhuma rocha, nem se deixava ao menos ouvir no segredo das folhas ou das areias .
Então, o gatinho veio tocar-me os pés com humildade. Isto é o que mais me custa lembrar: a meiguice com que inclinava a cabecinha doente nos meus sapatos, como a perguntar-lhes: “Por que pararam? Levem-me a algum lugar! Não vêem que estou tão precisado, tão mortinho de sede e fome?”
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E levantei-me e recomecei a andar – triste pelo gatinho como pela infelicidade de um povo ou de um parente. E sem esperança de nada . E fui andando. E ele atrás de mim. E fazia cabriolas. E queria andar tão depressa, que até atrapalhava as quatro perninhas. E ia de olhos no chão, disciplinado, com um ar de funcionário submisso, mas de repente virara menino travesso, e dava pulinhos, logo perdia as forças e levantava a cabeça com boca suplicante e olhos dissolvidos.
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Nessa altura é que nos aconteceu uma coisa extraordinária: vinha subindo a montanha uma pessoa. E o pobre bichinho, que devia estar zonzo de canseira, confundiu os pés que subiam com os que desciam, e passou a acompanhar o transeunte inesperado.
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Veio-me então a saudade de perdê-lo. E a melancolia de lhe não ter dado nenhuma ajuda. Perguntei aos espíritos que me cercavam o que devia fazer. E um deles – não sei qual – me respondeu que talvez fosse melhor deixa-lo com o seu destino. (Devia ser o espírito prático, que é o mais covarde ...) E arrazoava: o passante podia levar consigo o sanduíche que me faltava... (Mas o espírito do amor, esse eu bem sei que ia chorando, dentro de mim, desconvencido e inconsolável.)
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E agora tenho a lembrança da montanha, poderosa, bela, virente, e, em seu flanco, a imagem do gatinho triste, como coisa para toda a vida.
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Primeiro, pensei que aquilo era apenas uma aventura curiosa, que esqueceria ao chegar à cidade .E aprecia estar esquecido. Mas esta noite sonhei com ele. Sonhei com o gatinho que já deve ter morrido, que morreu certamente àquela tarde mesma. E disse para a sua imagem: “Mas eu te amei antes de morreres ...” Depois, achei a frase idiota. Nem ao menos original. Parecia a última fala de Otelo.
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Cecília Meireles
(Coleção Melhores Crônicas)
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10 de ago. de 2006

Fala Helena ...

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Deixa esse continente inóspito que habitas.
Iça teu sonho - vela branca - em altos mastros
E singra, solitário, rumo aos astros.
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Nem tempo nem espaço a perturbar a viagem...
Navegas ao sabor do pensamento
Por águas infinitas.
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(Helena Kolody)
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Foto de Ricardo Tavares
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7 de ago. de 2006

Parabéns Haline !

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Fico muito feliz com a vitória da Haline
que conheci através desse blog .
Mais uma brasileira batalhando e vencendo
em outras terras ...
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