30 de jun. de 2008

Sobre as bibliotecas ...

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Real Gabinete Português de Leitura - Rio de Janeiro



Um dia veio uma peste e acabou com
toda vida na face da Terra:
em compensação ficaram as bibliotecas...
E nelas estava meticulosamente escrito
o nome de todas as coisas!

Mario Quintana
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27 de jun. de 2008

100 ANOS DE JOÃO GUIMARÃES ROSA !

Hoje reli o GRANDE SERTÃO: VEREDAS, seguindo frases que eu grifei na minha primeira leitura :
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O sertão está em toda a parte. (p.8)

Viver é negócio muito perigoso. (p.10)

Eu sou é eu mesmo. Divêrjo de todo o mundo ... (p.14)

O senhor... Mire veja: o mais importante e bonito do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas- mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam . Verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso que me alegra, montão. (p.21)

Eu atravesso as coisas- e no meio da travessia não vejo! – só estava era entretido na idéia dos lugares de saída e de chegada. Assaz o senhor sabe: a gente quer passar um rio a nado, e passa; mais vai dar na outra banda é num ponto muito mais embaixo, bem diverso do em que primeiro se pensou. Viver nem não é muito perigoso? (p 33)

Moço: toda saudade é uma espécie de velhice. (p.37)

Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é nomeio da travessia. (p.60)

Viver é um descuido prosseguido. (p.65)

O sertão é do tamanho do mundo . (p.68)

Cada hora, de cada dia, a gente aprende uma qualidade nova de medo! (p.81)

Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da gente do que outras, de recente data. (p.92)

Sozinho sou, sendo, de sozinho careço, sempre nas estreitas horas – isso procuro. (p.143)

Esta vida está cheia de ocultos caminhos. (p.144)

Sertão é isso, o senhor sabe: tudo incerto, tudo certo. Dia da lua. O luar que põe a noite inchada. (p.146)

Afirmo ao senhor, do que vivi: o mais difícil não é um ser bom e proceder honesto; dificultoso, mesmo, é um saber definido o que quer, e ter o poder de ir até no rabo da palavra . (p.162-163)

Acho que o espírito da gente é cavalo que escolhe estrada: quando ruma para tristeza e morte, vai não vendo o que o que é bonito e bom. (p.174)

Coração cresce de todo lado. Coração vige feito riacho colominhando por entre serras e varjas, matas e campinas. Coração mistura amores. Tudo cabe. (p.176)

A noite é uma grande demora. (p.191)

Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende . (p.289)

Meu coração é que entende, ajuda minha idéia a requerer e traçar. (p.290)

Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura. (p.291)

O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria, e inda mais alegre ainda no meio da tristeza! Só assim de repente, na horinha em que se quer, de propósito – por coragem. Será? Era o que eu às vezes achava. Ao clarear do dia . (p.297)

Ser forte é parar quieto; permanecer. (p.392)

O sertão não tem janelas nem portas. (p. 462)

A vida é muito discordada. Tem partes. Tem artes. Tem as neblinas de Siruiz. Tem as caras todas do Cão, e as vertentes do viver. (p.471)

O senhor escute meu coração, pegue no meu pulso. O senhor avista meus cabelos brancos... Viver – não é? – é muito perigoso. Por que ainda não se sabe. Porque aprender-a-viver é que é o viver, mesmo. O sertão me produz, depois me engoliu, depois me cuspiu do quente da boca... O senhor crê minha narração? (p. 546)
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João Guimarães Rosa, Grande sertão : veredas . Editora Nova Fronteira , 1984.

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25 de jun. de 2008

BANZAI MARIA KAWASHIMA !

INFÂNCIA
Um gosto de amora

comida com sol. A vida
chamava-se "Agora".
(Guilherme de Almeida)


Sra. Maria Kawashima
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Casamento de Sumiko e Hiroshi


Festa de casamento de Sumiko e Hiroshi
(Eu tinha 11 anos e estava muito feliz ! )
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Saindo de Pacaembu, passando pela rodovia, virando à direita na altura da Companhia de Força e Luz, seguindo pela estrada até a ponte do córrego, subindo a ladeira, entrando à esquerda e andando mais uns 500 metros, finalmente, eu chegava ao sítio dos Kawashima.
Dona Maria Kawashima era comadre de minha mãe. Uma imigrante batalhadora que com sabedoria, dignidade e muito trabalho, criou os filhos sozinha depois de ter ficado viúva. Com Dona Maria e a sua família, aprendi valores e costumes de uma típica família japonesa daquela época.
A casa simples de madeira, encravada no meio do cafezal ficava em frente ao terreiro onde, na época da colheita, os grãos eram esparramados em camadas finas para a secagem. O verde da plantação toda enfileiradinha fazia zigue zague pela boa terra do oeste paulista. Quando vista de longe pelos meus olhos de menina parecia um grande bordado enfeitado com pontinhos vermelhos do fruto maduro.
Entrar naquela casa era sempre uma alegria, a primeira sala tinha em suas paredes algumas pinturas e várias folhinhas com cenas do Japão. Esparramadas pela mesa ventarolas coloridas eram logo oferecidas aos visitantes para aliviar as quentes tardes da Alta Paulista.
A primeira grande preocupação da anfitriã era oferecer a quem chegava uma mesa farta. Enquanto Dona Maria conversava com minha mãe, suas filhas imediatamente se dirigiam à cozinha para preparar sucos, doces e comidas típicas.
Com Dona Maria aprendi a gostar de alguns pratos da comida japonesa. No pilão (ussu), que ficava perto do tanque, a Darcy batia o arroz com uma grande marreta de madeira (tsuchi). Aos poucos tudo se transformava numa massa e, nas mãos habilidosas da Emília, surgia o moti. O meu doce preferido era o Anko (doce de feijão azuki). Eu me lembro da Darcy e da Emília no quintal perto da cozinha espremendo o azuki num pano branco e fininho para que toda a água fosse retirada. O Anko também estava presente no Mandiu, uma massa de trigo recheada com o doce de feijão. Podia ser cozido ao vapor (Fukashi-mandiu) ou assado (Yaki-mandiu).
Com Dona Maria aprendi a gentileza de saber presentear. Nunca ela visitou minha casa sem levar uma lembrancinha, um pequeno presente, um omiyage.
Dona Maria me ensinou muito mais do que palavras como konnichiwa, konbanwa, sayoonara, okaasan, otoosan, obaasan, ojiisan, arigato gozaimashita. Com ela aprendi o que era guiri. Ela nunca pronunciou essa palavra, mas em seus pequenos gestos demonstrou que o espírito de gratidão (guiri) estava presente em seu coração e no coração da sua família. Esse sentimento nobre que ela oferecia as amigas foi o maior ensinamento que recebi dessa imigrante tão especial na minha infância.
BANZAI MARIA KAWASHIMA ! BANZAI! BANZAI! BANZAI!

18 de jun. de 2008

BANZAI! BANZAI! BANZAI! 100 ANOS DE IMIGRAÇÃO JAPONESA NO BRASIL!

hyaku nen no
keshiki o niwa no
ochiba kana
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Cem anos de idade —
A paisagem das folhas
Caídas no jardim.
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Bashô
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Nasci em Pacaembu, uma cidade colonizada principalmente por imigrantes japoneses. Cresci entre dois grupos que marcaram a minha maneira de viver e de amar, de um lado os japoneses, do outro, os italianos.
Comemorar os 100 anos da imigração japonesa no Brasil, é falar sobre uma parte da minha história.

Pacaembu no final da década de 40
Pharmácia Moderna e Alfaiataria SSAITO

Palavras escritas nas duas línguas

Minha mãe com uma das suas afilhadas

Família amiga

Aniversário de um amiguinho
(Sou a primeira menina do lado esquerdo da foto)

Amigas queridas do grupo escolar


BANZAI FAMÍLIA MYIATA !


Os Myiatas formavam uma grande família e viviam todos juntos na casa principal da fazenda.
Maria Myiata sempre se hospedava em minha casa, por causa dos tratamentos que fazia. Dizia que seu estômago estava caído, usava um colete apertado, mas não conseguia se livrar do problema.

Maria Myiata

Maria acompanhou minha mãe em sua árdua luta contra o meu primeiro incômodo: um umbigo saltado na barriga. Fizeram de tudo, usaram moedas, amarraram coisas, colocaram misturas caseiras, mas nada adiantava. Foi quando conheceram uma benzedeira que fazia milagres.
E lá fomos nós para a benzedeira: Maria, mamãe e eu. Seguimos o ritual ao pé da letra, sem faltar ou atrasar um dia sequer. No sétimo dia, a surpresa: o umbigo misteriosamente já estava no lugar.
Seu Myiata trouxe do Japão uma arte que estava relacionada com o cotidiano dos japoneses, o artesanato com bambu. Ele passava horas sentado num banquinho, mergulhado entre a saudade da sua terra e a criatividade. Enquanto trabalhava, surgiam balaios, peneiras, lanternas, móveis , sombrinhas, leques... Objetos que eram presenteados aos filhos, vizinhos e amigos.

Mamãe e o Pé-de-bode

Certo dia, minha mãe alugou um Pé-de-bode, queria visitar os Myiatas. Num instante, já estávamos saculejando por aquele estradão de terra: mamãe, tia Alzira e eu. O carro era minúsculo, mal dava para respirar. No caminho passamos por uma ponte alta, ponte velha, estreita, depois começamos uma subida íngreme. No início, o carro já começou a mostrar sinais de cansaço. No meio, começou a falhar e, de repente, morreu. Morreu e foi despencando ladeira abaixo e só parou num tronco pertinho da ponte de madeira.
Não sei como chegamos no sítio dos Myiatas. Não sei o que minha mãe falou para o motorista quando a poeira baixou, mas sei que nunca mais andei de Pé-de-bode em toda a minha vida.
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osoki hi no tsumorite tôki mukashi kana
Dias que se alongam —
Cada vez mais distantes
Os tempos de outrora!
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( Na próxima postagem: BANZAI FAMÍLIA KAVASHIMA! )

17 de jun. de 2008

120 anos de Fernando Pessoa !

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TRAGO DENTRO do meu coração,
Como num cofre que se não pode fechar de cheio,
Todos os lugares onde estive,
Todos os portos a que cheguei,
Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias,
Ou de tombadilhos, sonhando,
E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero.
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Álvaro de Campos
Obra Poética - Editora Nova Aguilar, p. 341
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120 anos de Fernando Pessoa !

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Não tenho ambições nem desejos
Ser poeta não é uma ambição minha
É a minha maneira de estar sozinho.
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Alberto Caeiro
Obra Poética - Editora Nova Aguilar, p. 203
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13 de jun. de 2008

13 de junho de 1888 - 13 de junho de 2008 :120 ANOS DE FERNANDO PESSOA !

Fernando aos dez anos

Fernando Pessoa aos vinte anos


A última fotografia, tirada por Augusto F. Gomes
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(...) Desde criança tive a tendência para criar em meu torno um mundo fictício de me cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram. (Não sei, bem entendido, se realmente não existiram, ou se sou eu que não existo. Nestas coisas como em todas, não devemos ser dogmáticos.) Desde que me conheço com aquilo a que chamo eu, me lembro de precisar mentalmente, em figuras, movimentos, caráter e história, várias figuras irreais que eram para mim visíveis e minhas como as coisas daquilo a que chamamos, porventura abusivamente, a vida real. Esta tendência, que me vem desde que me lembro de ser um eu, tem-me acompanhado sempre, mudando um pouco o tipo de música com que me encanta, mas não alterando nunca a sua maneira de encantar.
Lembro, assim, o que me parece ter sido o meu primeiro heterônimo, ou, antes, o meu primeiro conhecido inexistente – um certo Chevalier de Pas dos meus seis anos, por quem escrevia catas dele a mim mesmo, e cuja figura, não inteiramente vaga, ainda conquista aquela parte da minha afeição que confina com a saudade. (...) Coisas que acontecem a todas as crianças? Sem dúvida – ou talvez. Mas a tal ponto as vivi que as vivo ainda, pois que as relembro de tal modo que é mister um esforço para me fazer saber que não foram realidades.
Esta tendência para criar em torno de mim um outro mundo, igual a este mas com outra gente, nunca me saiu da imaginação. Teve várias fases, entre as quais esta, sucedida já em maioridade.
(...) Aí por 1912, salvo erro (que nunca pode ser grande), veio-me à idéia escrever uns poemas de índole pagã. Esbocei uma coisas em verso irregular (não no estilo Álvaro de Campos, mas num estilo de meia regularidade), e abandonei o caso. Esboçara-se-me, contudo, numa penumbra mal urdida, um vago retrato da pessoa que estava a fazer aquilo. (Tinha nascido, sem que eu soubesse, o Ricardo Reis.)
(...) foi em 8 de Março de 1914 – acerquei-me de uma cômoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título, O Guardador de Rebanhos. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre. Foi essa a sensação imediata que tive. E tanto assim que, escritos que foram esses trinta e tantos poemas, imediatamente peguei noutro papel e escrevi, a fio, também, os seis poemas que constituem a Chuva Oblíqua, de Fernando Pessoa. Imediatamente e totalmente...Foi o regresso de Fernando Pessoa Alberto Caeiro a Fernando Pessoa ele só. Ou, melhor, foi a reação de Fernando Pessoa contra a sua inexistência como Alberto Caeiro.
Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir- instintiva e subconscientemente- uns discípulos. Arranquei do seu falso paganismo o Ricardo Reis latente, descobri-lhe o nome e ajustei-o a si mesmo, porque nessa altura já o via. E, de repente, e em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente um novo indivíduo. Num jato, e à máquina de escrever, sem interrupção nem emenda, surgiu a Ode Triunfal de Álvaro de Campos – a Ode com esse nome e o homem com o nome que tem.
(...) Parece que tudo se passou independentemente de mim. E parece que assim ainda se passa. Se algum dia eu puder publicar a discussão estética entre Ricardo Reis e Álvaro de Campos, verá como eles são diferentes, e como eu não sou nada na matéria.
(...) Ricardo Reis nasceu em 1887 (não me lembro do dia e mês, mas tenho-os algures), no Porto, é médico e está presentemente no Brasil. Alberto Caeiro nasceu em 1889 e morreu em 1915; nasceu em Lisboa, mas viveu quase toda a sua vida no campo. Não teve profissão nem educação quase alguma. Álvaro de Campos nasceu em Tavira, no dia 15 de Outubro de 1890 (às 1,30 da tarde, diz-me o Ferreira Gomes; e é verdade, pois, feito o horóscopo para essa hora, está certo). Este, como sabe, é engenheiro naval (por Glasgow), mas agora está aqui em Lisboa em inatividade. Caeiro era de estatura média, e , embora realmente frágil (morreu tuberculoso), não parecia tão frágil como era. Ricardo Reis é um pouco, mas muito pouco, mais baixo, mais forte, mas seco. Álvaro de Campos é alto (1,75 m de altura, mais 2 cm do que eu), magro e um pouco tendente a curva-se. Cara rapada todos – o Caeiro louro sem cor, olhos azuis; Reis de um vago moreno mate; Campos entre branco e moreno, tipo vagamente de judeu português, cabelo, porém, liso e normalmente apartado ao lado, monóculo. Caeiro , como disse, não teve mais educação que quase e nenhuma – só instrução primária; morreram-lhe cedo o pai e a mãe, e deixou-se ficar em casa, vivendo de uns pequenos rendimentos,. Vivia com uma tia velha, tia-avó. Ricardo Reis, educado num colégio de jesuítas, é, como disse, médico; vive no Brasil desde 1919, pois se expatriou espontaneamente por ser monárquico. É um latinista por educação alheia, e um semi-helenista por educação própria. Álvaro de Campos teve uma educação vulgar de liceu; depois foi mandado para a Escócia estudar engenharia, primeiro mecânica e depois naval. Numas férias, fez a viagem ao Oriente de onde resultou o Opiário. Ensinou-lhe latim um tio beirão que era padre.
Como escrevo em nome desses três?...Caeiro por pura e inesperada inspiração, sem saber ou sequer calcular que iria escrever. Ricardo Reis, depois de uma deliberação abstrata, que subitamente se concretiza numa ode. Campos, quando sinto um súbito impulso para escrever e não sei o quê . (O meu semi-heterônimo Bernardo Soares, que aliás em muitas coisas se parece com Álvaro de Campos, aparece sempre que estou cansado ou sonolento, de sorte que tenha um pouco suspensas as qualidades de raciocínio e de inibição; aquela prosa é um constante devaneio. É um semi-heterônimo porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e afetividade. A prosa, salvo o que o raciocínio dá de tênue à minha, é igual a esta, e o português perfeitamente igual; ao passo que Caeiro escrevia mal o português, Campos razoavelmente mas com lapsos como dizer “eu próprio” em vez de “eu mesmo”, etc., Reis melhor do que eu, mas com um purismo que considero exagerado. O difícil para mim é escrever a prosa de Reis – ainda inédita – ou de Campos. A simulação é mais fácil, até porque é mais espontânea, em verso.)
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Carta a Adolfo Casais Monteiro, Lisboa, 13 de Janeiro de 1935.
Fernando Pessoa , OBRAS EM PROSA . Editora Nova Aguilar, p. 95 - 98
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Fotografias:
Maria José de Lancastre, FERNANDO PESSOA - Uma fotobiografia. Editora Civilização Brasileira

8 de jun. de 2008

( Maria de Lourdes Hortas...)

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Maria de Lourdes Hortas no Gabinete Português de Leitura Recife
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Sou a minha linguagem
Nela venho e nela vem
Refletida esta paisagem
Que contenho e me contém.
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Fotografia encontrada no blog Esquina Poética

PEQUENOS ANÚNCIOS

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PEQUENOS ANÚNCIOS
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1. Perdeu-se uma alegria:
impossível precisar o instante
e muito menos o ano, o mês ou dia.
gratifica-se a quem a devolver
mesmo danificada:
é bem melhor meia alegria
do que nada.
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2. Foi roubada a lua
da noite da minha rua:
implora-se ao ladrão
que a devolva
em mãos.
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5 de jun. de 2008

Mais um poema do menino declamador ...

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ANÚNCIOS CLASSIFICADOS
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VENDE-SE uma casa de alabastro
com duas janelas debruçadas
de sol.
Tem um olho de jade voltado para o Norte
e um pomar de pêssegos como seios macios.
Tem mar próprio em trânsito para as ilhas
do mundo, e céu próprio servido por gaivotas;
e uma lua enorme e tropical
para week-ends.
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VENDE-SE grande mansão para colégio
ou asilo, rica de paredes;
tem um telhado como o das tartarugas.
Os corredores são enormes
e do seu pátio central
não parte rua nenhuma.
Os muros do quintal são tão subidos
que nem os cães nem a lua poderão
transpô-los.
E no seu jardim desfila
um esquadrão disciplinado
de árvores sem frutos.
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ALUGA-SE uma casa de alva
com três janelas para o amanhã.
Um rio a contorna ao poente
e os seus jardins têm à noite
a luz indireta dos astros.
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SENHORA, procura-se uma
que tenha os olhos da Gioconda,
que tenha a pele da Madona,
e a pureza de Santa Maria Egipcíaca
e o silêncio de Ofélia sob as águas.
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AINDA HÁ VAGA numa ilha
para a que há de vir cheia de graça,
a que terá olhos de cinza
e mãos vivas como a estrela da paineira.
Ainda há vaga onde o sol
vem de manhã sobrevoar o canavial.
Onde as palmeiras residem junto ao mar
acenando com os braços aos navios que passam.
Exigem-se referências
e cintura delgada como a haste dos coqueiros.
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MÁQUINA DE ESCREVER —vende-se uma—
­que escreve poesia e cartas;
deu corpo a oitenta elegias,
epitáfios e sonetos.
A sua fita é um arco-íris
que dá a cor da pele às palavras.
Dos seus quarenta e dois tipos
escorrem sinais como luzes
acendendo, à noite, numa cidade sem estrelas.
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Alberto Carvalho da Silva, A FÉNIX REFRATÁRIA - 1959

3 de jun. de 2008

O menino declamador ...

Relendo ANARQUISTAS, GRAÇAS A DEUS, encontro Zélia comentando sobre dois meninos vindos de Portugal para a sua sala de aula :
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COLEGAS NOVOS
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Dona Carolina nos comunicou um dia, ao chegarmos à sala de aula:
- Amanhã teremos dois coleguinhas novos. São dois meninos recém-chegados de Portugal. Eles ainda não sabem falar direito a nossa língua, mas são meninos inteligentes e educados. Eu peço a vocês, por favor, que não caçoem; eles têm um sotaque carregado, falam muito engraçado, mas a gente precisa ter educação.
Levou tempo na recomendação, deu alguns exemplos sobre cordialidade e boas maneiras. Bateu tanto na tecla da polidez que acabamos – toda a classe- na maior curiosidade de conhecer as duas aves raras.
No dia seguinte, como havia anunciado, apareceram os dois irmãozinhos, Alberto e Domingos Carvalho da Silva. Muito encabulados com tantos olhos a devorá-los, foram se ambientando aos poucos. Eu não ri nem uma vez deles, embora achasse graça de sua maneira de falar. Fiquei contente de entender quase tudo o que diziam.
Um belo dia, na hora dos recitativos, dona Carolina perguntou aos irmãos Carvalho da Silva se sabiam recitar. Domingos declarou que sim e até que, “por acaso”, conhecia uma poesia muito bonita.
No meio da sala, o menino deu um verdadeiro show de declamação! O poema referia-se a um analfabeto que havia recebido uma carta e aflito fazia conjecturas sobre o conteúdo da mesma; seria da mãe ausente? Teria ela morrido?... Domingos gesticulava, suava, chegou a chorar de emoção, parecia que tudo o que os versos diziam era realidade. Extasiada diante de tão grande artista, senti-me, ao mesmo tempo, arrasada e encantada. Daí por diante eu, que até então era arroz-de-festa, a tal nos recitativos e gestos, passei para a sombra de Domingos Carvalho da Silva.
Os dois irmãos não ficaram muito tempo nessa escola e sumiram de minha vista. Encontrei Domingos, muitos anos mais tarde, não o famoso declamador que eu supunha ele viria a ser, mas como poeta, ótimo poeta. Quanto a Alberto, é hoje cientista conhecido.
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Zélia Gattai. Anarquistas, Graças a Deus. Editora Record, p.191-192
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Esses “ meninos de Portugal” citados por Zélia , cresceram no Brasil e fizeram história:

Alberto Carvalho da Silva, cursou medicina, ciências sociais, filosofia, matemática e química.“Nos anos 40, fez-se pesquisador em fisiologia, dedicando-se aos aspectos bioquímicos e metabólicos da nutrição. Nos anos 50 e 60 esteve ligado à criação da Associação de Auxiliares de Ensino — semente da Associação de Docentes da Universidade de São Paulo (Adusp) — e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), de que veio a se tornar diretor científico em 1968”
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Minha atenção durante a leitura foi toda dirigida para o “menino declamador”. Só depois percebi que esse Domingos, era Domingos Carvalho da Silva, membro da Academia Paulista de Letras, membro da Comissão Estadual de Literatura, membro fundador e presidente da Academia Brasiliense de Letras, o principal porta-voz da Geração de 45.
Essa sua habilidade em recitar poemas que deixou Zélia encantada, foi lembrada em muitas ocasiões. José Pastore, por exemplo, quando sucedeu Domingos na Academia Paulista de Letras, destacou em seu discurso, justamente o prazer ele tinha em recitar poemas de Castro Alves, Raimundo Correa e Olavo Bilac nas festas do seu Grupo Escolar.
Um menino declamador que amava a poesia, que se tornou poeta e que não perdeu com os anos o amor pela poesia e pelo ofício de poeta:
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Este grave ofício de poeta
Que exerço enquanto o tempo vai
Dando mais terra à minha sombra,
Não o aprendi com meu pai.
Este meu álibi de cantar
Para ausentar-me do que sou,
De minha mãe não o herdou
O filho rebelde e sem lar.
Este ritmo que celebrei
No contraponto da viola,
Jamais aprendi na escola
E a mim mesmo ensinei.
Sou inventor do que sou
E, embora neto de avós,
Tenho de próprio a minha voz,
bússola do Norte aonde vou.
Quero a poesia em essência
Abrindo as asas incólumes.
Boêmia, perdida ou tísica,
Viva ou morta, amo a poesia.
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Que delícia ter encontrado nas doces recordações de Zélia Gattai esse menino Domingos, não resisto, mais um verso:
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Quero a palavra fluente,
viva e inquieta como o sangue.
Pura ou impura eu reclamo
a poesia do momento,
filtrada exata constante.

(em Rosa extinta -1945)
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Para encerrar, um convite:

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"correi o mundo e procurai palavras novas para um poema"
(Praia oculta (1949) em “A rosa irrevelada”)

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