29 de nov. de 2009

(sobre a angústia ...)

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Esta velha angústia,

Esta angústia que trago há séculos em mim,

Transbordou da vasilha,

Em lágrimas, em grandes imaginações,

Em sonhos em estilo de pesadelo sem terror,

Em grandes emoções súbitas sem sentido nenhum.
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Transbordou.

Mal sei como conduzir-me na vida

Com este mal-estar a fazer-me pregas na alma!

Se ao menos endoidecesse deveras!

Mas não: é este estar entre,

Este quase,

Este poder ser que...,

Isto.
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Um internado num manicômio é, ao menos, alguém,

Eu sou um internado num manicômio sem manicômio.

Estou doido a frio,

Estou lúcido e louco,

Estou alheio a tudo e igual a todos:

Estou dormindo desperto com sonhos que são loucura

Porque não são sonhos.

Estou assim...
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Pobre velha casa da minha infância perdida!

Quem te diria que eu me desacolhesse tanto!

Que é do teu menino? Está maluco.

Que é de quem dormia sossegado sob o teu teto provinciano?

Está maluco.

Quem de quem fui? Está maluco. Hoje é quem eu sou.
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Se ao menos eu tivesse uma religião qualquer! P

or exemplo, por aquele manipanso

Que havia em casa, lá nessa, trazido de África.

Era feiíssimo, era grotesco,

Mas havia nele a divindade de tudo em que se crê.

Se eu pudesse crer num manipanso qualquer —

Júpiter, Jeová, a Humanidade —

Qualquer serviria,

Pois o que é tudo senão o que pensamos de tudo?
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Estala, coração de vidro pintado!
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Álvaro de Campos

(Fernando Pessoa - Obra Poética - Volume único, p.390-391)

25 de nov. de 2009

Para Emília Miranda ...

Pedra filosofal
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Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos
que em verde e oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.
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Eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho álacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
num perpétuo movimento.
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Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa-dos-ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é Cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
pára-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão do átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.
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Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida.
Que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança.
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António Gedeão
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12 de nov. de 2009

Nascimento do poema

Dora em sua residência - Fotografia de Edu Simões
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É preciso que venha de longe
do vento mais antigo
ou da morte
é preciso que venha impreciso
inesperado como a rosa
ou como o riso
o poema inecessário.
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É preciso que ferido de amor
entre pombos
ou nas mansas colinas
que o ódio afaga
ele venha
sob o látego da insônia
morto e preservado.
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E então desperta
para o rito da forma
lúcida
tranqüila:
senhor do duplo reino
coroado
de sóis e luas.
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Dora Ferreira da Silva

7 de nov. de 2009

Josué Montello...



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3 de maio (1973)
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O esquecimento é uma forma de silêncio. De silêncio absoluto. Vem com o tempo, que nos rói a memória. Pode ser um bem, pode ser uma mal. Apaga tudo, reduzindo a escrita ao papel em branco, com a sua lição de humildade.
Por isso mesmo, todo escritor, no começo da vida literária, deveria fazer um estágio de velhas revistas. Ali, no volver de cada folha, há sempre à nossa espera uma lição a recolher. Quanto ruído inútil em torno de certos nomes e de certas obras!
Andei folheando, de ontem para hoje, uma coleção de Fon-fon, entre 1929 e 1934. Ninguém mais famoso do que Bastos Portela. Do que Martins Capistrano. Do que Mário Poppe. Este último, crítico literário. Todos mudos. E esquecidos. Todos. Nem um deles chegou até nós.
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Josué Montello - Diário Completo (Volume I), p.1253

6 de nov. de 2009

Portinari...

Portinari - Meninos brincando (1955)
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A paisagem onde a gente brincou pela primeira vez
não sai mais da gente.

Candido Portinari
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Mais um presente do querido poeta José Carlos Brandão:.
Leonor, deixo-lhe aqui um sonetinho a Portinari - que fala justamente de brincadeiras, da infância:
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Portinari - Futebol (1935)
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A pandorga azul entre as nuvens e os pássaros
Brinca no céu azul.
Os anjos batem as asas brancas
Sobre o campo de futebol.
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São Jorge enfrenta o dragão na lua,
Candinho aprende que a vida é fábula.
São José conversa com a Virgem
Na pequena capela da Nonna.
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O menino morre nos braços da mãe,
Vai pintar a outra vida de azul:
A morte é azul como os olhos de Deus.
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Uma flor se abre nos olhos do menino
Suspenso no cosmo como um balão:
Candinho bate as asas brancas no paraíso azul.
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4 de nov. de 2009

O apanhador de desperdícios

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Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água, pedra, sapo.
Entendo bem o sotaque das águas.
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim esse atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos,
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios
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.Manoel de Barros

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2 de nov. de 2009

La carencia

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Yo no sé de pájaros,
no conozco la historia del fuego.
Pero creo que mi soledad debería tener alas.
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Alejandra Pizarnik
( De Las Aventuras Perdidas )
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Não sei sobre pássaros,
não conheço a história do fogo.
Mas creio que minha solidão deveria ter asas.