28 de set. de 2010

Vigília

Gustave Doré
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Ardem
sombras
no ocaso

pedras
moem
sonhos
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céus
abatem
quixotes
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(sonho
sombrio
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que a vida
abrevia)

ardem
sombras
no ocaso
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Marco Lucchesi
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8 de set. de 2010

Epílogo...


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EPÍLOGO
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Finda a leitura, o livro está completo
em sua solidão mais-que-perfeita
de couro falso e íntimo papel.
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Lá fora, o mundo segue, arquitetando
as mesmas contingências costumeiras
que nunca esbarram numa irrefutável
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conclusão que se possa resumir
em três letras letais, inalienáveis.
Que paz será possível nessa selva
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sem índices, prefácios, rodapés?
indaga, da estante mais excelsa,
o livro. Porém, nada disso importa,
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se todas as dúvidas se dissipam,
com tudo mais, quando o bibliotecário
apaga as luzes, sai e tranca a porta.
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Paulo Henriques Britto
In Tarde. Companhia das Letras, São Paulo, 2007

4 de set. de 2010

Clarice...

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(menina Clarice no Rio)

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Ter nascido me estragou a saúde.

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Clarice Lispector
in Para não esquecer. Círculo do livro, São Paulo, 1980. p.135

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1 de set. de 2010

O aprendiz de poesia

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(...) Muito plagiei, a princípio. Primeiro timidamente, depois como um possesso. Castro Alves, companheiro de noitadas de meu tio-avô Mello Moraes Filho, emprestou-me sua revolta condoreira. Olavo Bilac cedeu-me o diamante com que cortava os duros cristais de sua poesia. Guilherme de Almeida presenteou-me com seu geraldysmo, sua reticência ilustre, seu sorriso imóvel e seus punhos de renda. Menotti deu-me seu lorgnon, seus crachás, seu jucamulatismo. Descia de Antero a Júlio Dantas, perpetrando ceias, desvendando seios, ai de mim. Abria a antologia à toa e esperava. Casemiro? Casemiro! E assim se foi povoando de negros caracteres impecáveis um grande livro de capa preta, rubricado "Prefeitura do Distrito Federal", sobre que, tenho a impressão, um funcionário qualquer, meu parente, havia feito mão baixa. Mas que importava? Era um livro belo, um caderno de perfeito almaço, da grossura da minha ambição de criar poesia, vasto bastante para o menino que queria voar com asas roubadas, essas que tão cuidadosamente punha nas omoplatas para o exercício noturno dentro de seu quarto dentro da Ilha dentro da baía dentro da cidade dentro do país dentro do mar dentro do mundo.
Um dia conheci um poeta como mandam as regras, com livro publicado e tudo o mais. Chamava-se João Lyra Filho, era moço nortista, apaixonado, e recitava Augusto dos Anjos por trás de uma cadeira. Augusto dos Anjos! Como me chocava aquela ousadia de palavras, a misturar a miséria ao sublime, o esterco à estrela, a podridão do túmulo à beleza da vida! Preferia Adelmar, para quem, naquele tempo, voltavam-se os olhos fiéis de João Lyra Filho como os do sacristão para o padre.
Certa vez, depois de uma noite de angústia, resolvi mostrar-lhe meus versos. Reunira-os sob o nome de "Foederis arca". Mas o poeta não gostou. Disse-me de modo brando que desistisse daquilo. Falou-me da predestinação poética, que eu não tinha. Meu negócio devia ser outro. Faltava-me aquele imponderável que os amantes do belo representam esfregando sutilmente a polpa do polegar contra a dos outros dedos, mas não como para indicar o vil metal: mais devagar, como a destilar a própria substância imanente da arte.
O poetinha aprendiz desistiu?
Coisíssima nenhuma! Prossegui firme, inabalável, entre alexandrinos, decassílabos e redondilhas, a perpetrar odes, sonetos, elegias, éclogas, cromos e acrósticos que dava fielmente às namoradas que fui semeando, da Gávea a Sabará.
Era o martírio da poesia, em todo o meu desvario.
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Uma noite – eu tinha 17 anos – Otávio de Faria e eu fomos tocando a pé da Galeria Cruzeiro até a Gávea, onde ficava minha casa, na rua Lopes Quintas. Não era infreqüente fazermos isso, à base da conversa. Era um hábito da amizade entre o calouro e o veterano da Faculdade de Direito do Catete, aquele passeio noturno povoado das sombras de Nietzsche e da pantomima de Chaplin. Lembro-me que à meia-noite, bem alto, na estrada de Orion, brilhava uma lua como nunca vi mais cheia, a cabeleira solta, os seios nus, o olhar de louca a me varar o peito de súplicas e doestos.
Era tal o mistério dessa noite que agora mesmo, escrevendo na minha sala noturna, sinto os cabelos se me içarem de leve, como se fosse sentir novamente sobre eles a mão macia da lua cheia.
Deixei Octavio de Faria no seu bonde de volta e subi Lopes Quintas, rumo a casa. O sossego era perfeito, total o sono do mundo. Só às vezes, subitamente, dos espaços descia um braço de vento que varria as folhas secas da rua e empinava papéis velhos como hipocampos. Transpus, ansiado, a distância familiar que me levava para alguma coisa que sentia vir mas não sabia o que era. Em casa, galguei rápido as escadas para o meu quarto no primeiro andar, e fui sentar-me ofegante à escrivaninha antiga, a mesma que tenho hoje, a mesma que suportou na infância o peso da minha ambição de ser poeta. A janela estava aberta, e em sua moldura a lua viera se postar, os olhos cravados em mim.
Não sei como foi, mas sei que foi diferente de tudo o que sentia antes. Meus ouvidos, como conchas, pareciam recolher os ruídos mais longínquos do mar que estilhaçava em mim. Ouvi o sopro da noite, o cair das folhas, o germinar das plantas que boliam fora, na mata próxima ao Corcovado, e ali perto, no jardim. Pombas vazaram do meu coração, deixando-me dentro, a se debater, a grande ave inimiga que me feria com suas asas querendo sair também, fugir, voar para longe. Senti-me sem peso, sem dimensão, sem matéria. Meu ser volatilizou-se para a lua, transformado ele próprio em substância lunar. E comecei a escrever como nunca dantes, liberto de métrica e rima, algo que era eu mas que era também diferente de mim; algo que eu tinha e de que não participava, como um fogo-fátuo a crepitar da minha carne em agonia.

Linha por linha, como psicografado, o poema – o meu primeiro poema – começou a brotar de mim.



O ar está cheio de murmúrios misteriosos...


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Há algum tempo atrás terminei os trabalhos de correção de uma coletânea de meus poemas, a sair proximamente. Lembrei-me do meu primeiro poema, do primeiro poema em que me vi criando poesia, transformando a natureza, sendo a voz que existia em mim e não era eu. Estudei longamente a possibilidade de colocá-lo na seleção, mas não houve jeito. Era ruim demais. Mas, curioso! senti a forma como a querer, em vão, segredar-me imponderáveis.
Tive saudades do tempo em que a poesia para mim era isso: a noite, com suas vozes, a lua com seus véus, o silêncio noturno da terra a rolar no infinito. Tive saudades de Júlio Dantas, Adelmar Tavares, João Lyra Filho. De repente, a poesia fez-se tão exigente, o poeta fez-se tão lúcido...
Por que tiveste que passar, poesia inocente, poesia ruim, que eu fazia com os olhos nos olhos da lua? Por que morreste e deixaste o poeta calmo, firme, sóbrio dentro da noite sem mistério?
Outubro de 1953


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Vinicius de Moraes
in Poesia Completa & Prosa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1986. p. 606 - 609