23 de dez. de 2006

Canto de Natal

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Canto de Natal
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O nosso menino
Nasceu em Belém.
Nasceu tão-somente
Para querer bem.
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Nasceu sobre as palhas
O nosso menino.
Mas a mãe sabia
Que ele era divino.
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Vem para sofrer
A morte na cruz,
O nosso menino.
Seu nome é Jesus.
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Por nós ele aceita
O humano destino:
Louvemos a glória
De Jesus menino.
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Manuel Bandeira
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Cartão de Natal

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Cartão de Natal
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Pois que reinaugurando essa criança
pensam os homens reinaugurar a sua vida
e começar novo caderno,
fresco como o pão do dia;
pois que nestes dias a aventura
parece em ponto de vôo, e parece
que vão enfim poder
explodir suas sementes:
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que desta vez não perca esse caderno
sua atração núbil para o dente;
que o entusiasmo conserve vivas
suas molas,
e possa enfim o ferro
comer a ferrugem
o sim comer o não.
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João Cabral de Melo Neto
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Compras de Natal

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Compras de Natal
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A cidade deseja ser diferente, escapar às suas fatalidades. Enche-se de brilhos e cores; sinos que não tocam, balões que não sobem, anjos e santos que não se movem, estrelas que jamais estiveram no céu.As lojas querem ser diferentes, fugir à realidade do ano inteiro: enfeitam-se com fitas e flores, neve de algodão de vidro, fios de ouro e prata, cetins, luzes, todas as coisas que possam representar beleza e excelência.
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Tudo isso para celebrar um Meninozinho envolto em pobres panos, deitado numas palhas, há cerca de dois mil anos, num abrigo de animais, em Belém.
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Todos vamos comprar presentes para os amigos e parentes, grandes e pequenos, e gastaremos, nessa dedicação sublime, até o último centavo, o que hoje em dia quer dizer a última nota de cem cruzeiros, pois, na loucura do regozijo unânime, nem um prendedor de roupa na corda pode custar menos do que isso.
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Grandes e pequenos, parentes e amigos são todos de gosto bizarro e extremamente suscetíveis. Também eles conhecem todas as lojas e seus preços — e, nestes dias, a arte de comprar se reveste de exigências particularmente difíceis. Não poderemos adquirir a primeira coisa que se ofereça à nossa vista: seria uma vulgaridade. Teremos de descobrir o imprevisto, o incognoscível, o transcendente. Não devemos também oferecer nada de essencialmente necessário ou útil, pois a graça destes presentes parece consistir na sua desnecessidade e inutilidade. Ninguém oferecerá, por exemplo, um quilo (ou mesmo um saco) de arroz ou feijão para a insidiosa fome que se alastra por estes nossos campos de batalha; ninguém ousará comprar uma boa caixa de sabonetes desodorantes para o suor da testa com que — especialmente neste verão — teremos de conquistar o pão de cada dia. Não: presente é presente, isto é, um objeto extremamente raro e caro, que não sirva a bem dizer para coisa alguma.
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Por isso é que os lojistas, num louvável esforço de imaginação, organizam suas sugestões para os compradores, valendo-se de recursos que são a própria imagem da ilusão. Numa grande caixa de plástico transparente (que não serve para nada), repleta de fitas de papel celofane (que para nada servem), coloca-se um sabonete em forma de flor (que nem se possa guardar como flor nem usar como sabonete), e cobra-se pelo adorável conjunto o preço de uma cesta de rosas. Todos ficamos extremamente felizes!.São as cestinhas forradas de seda, as caixas transparentes os estojos, os papéis de embrulho com desenhos inesperados, os barbantes, atilhos, fitas, o que na verdade oferecemos aos parentes e amigos. Pagamos por essa graça delicada da ilusão. E logo tudo se esvai, por entre sorrisos e alegrias. Durável — apenas o Meninozinho nas suas palhas, a olhar para este mundo.
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Cecília Meireles
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Texto extraído do livro "Quatro Vozes", Editora Record
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21 de dez. de 2006

Natal na Ilha do Nanja

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Natal na Ilha do Nanja

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Na Ilha do Nanja, o Natal continua a ser maravilhoso. Lá ninguém celebra o Natal como o aniversário do Menino Jesus, mas sim como o verdadeiro dia do seu nascimento. Todos os anos o Menino Jesus nasce, naquela data, como nascem no horizonte, todos os dias e todas as noites, o sol e a lua e as estrelas e os planetas. Na Ilha do Nanja, as pessoas levam o ano inteiro esperando pela chegada do Natal. Sofrem doenças, necessidades, desgostos como se andassem sob uma chuva de flores, porque o Natal chega: e, com ele, a esperança, o consolo, a certeza do Bem, da Justiça, do Amor. Na Ilha do Nanja, as pessoas acreditam nessas palavras que antigamente se denominavam "substantivos próprios" e se escreviam com letras maiúsculas. Lá, elas continuam a ser denominadas e escritas assim.

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Na Ilha do Nanja, pelo Natal, todos vestem uma roupinha nova — mas uma roupinha barata, pois é gente pobre — apenas pelo decoro de participar de uma festa que eles acham ser a maior da humanidade. Além da roupinha nova, melhoram um pouco a janta, porque nós, humanos, quase sempre associamos à alegria da alma um certo bem-estar físico, geralmente representado por um pouco de doce e um pouco de vinho. Tudo, porém, moderadamente, pois essa gente da Ilha do Nanja é muito sóbria.

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Durante o Natal, na Ilha do Nanja, ninguém ofende o seu vizinho — antes, todos se saúdam com grande cortesia, e uns dizem e outros respondem no mesmo tom celestial: "Boas Festas! Boas Festas!"

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E ninguém, pede contribuições especiais, nem abonos nem presentes — mesmo porque se isso acontecesse, Jesus não nasceria. Como podia Jesus nascer num clima de tal sofreguidão? Ninguém pede nada. Mas todos dão qualquer coisa, uns mais, outros menos, porque todos se sentem felizes, e a felicidade não é pedir nem receber: a felicidade é dar. Pode-se dar uma flor, um pintinho, um caramujo, um peixe — trata-se de uma ilha, com praias e pescadores ! — uma cestinha de ovos, um queijo, um pote de mel... É como se a Ilha toda fosse um presepe. Há mesmo quem dê um carneirinho, um pombo, um verso! Foi lá que me ofereceram, certa vez, um raio de sol!

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Na Ilha de Nanja, passa-se o ano inteiro com o coração repleto das alegrias do Natal. Essas alegrias só esmorecem um pouco pela Semana Santa, quando de repente se fica em dúvida sobre a vitória das Trevas e o fim de Deus. Mas logo rompe a Aleluia, vê-se a luz gloriosa do Céu brilhar de novo, e todos voltam para o seu trabalho a cantar, ainda com lágrimas nos olhos.

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Na Ilha do Nanja é assim. Árvores de Natal não existem por lá. As crianças brincam com. pedrinhas, areia, formigas: não sabem que há pistolas, armas nucleares, bombas de 200 megatons. Se soubessem disso, choravam. Lá também ninguém lê histórias em quadrinhos. E tudo é muito mais maravilhoso, em sua ingenuidade. Os mortos vêm cantar com os vivos, nas grandes festas, porque Deus imortaliza, reúne, e faz deste mundo e de todos os outros uma coisa só.
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É assim que se pensa na Ilha do Nanja, onde agora se festeja o Natal.
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Cecília Meireles

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(Texto extraído do livro “Quadrante 1”)
(Foto de Marc Ferrez)
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21 de nov. de 2006

Cecília Meireles

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“Liberdade é uma palavra que o sonho humano alimenta,
não há ninguém que explique e ninguém que não entenda.”

.Cecília Meireles

(Foto de Erik Reis)

17 de nov. de 2006

3 de nov. de 2006

Guimarães Rosa

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imagem: museu da língua portuguesa

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Texturas

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Texturas
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Não te preocupes em me decifrar,
sou costurada com a linha da ambigüidade,
vestida de discursos de calar.
Minha bainha não foi feita,
toco em todas as texturas.
Minha cor não foi eleita,
sou camaleão sem cura.
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Não procure em mim suas verdades.
Meu verso é repleto de possibilidades,
Não possuo seqüência, não possuo métrica.
Sou cúmplice da dualidade,
rima anacrônica perdida na realidade.
Não te preocupes em me decifrar,
Sou verso de intuição,
Pergunta possível,
tentativa de explicação.
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Gabriela Marcondes

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30 de out. de 2006

Olhares ...

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"... cada um de nós vê o mundo com os olhos que tem, e os olhos vêem o que querem, os olhos fazem a diversidade do mundo e fabricam as maravilhas, ainda que sejam de pedra, e altas proas, ainda que sejam de ilusão"
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(José Saramago em Jangada de pedra)

16 de out. de 2006

O utopista

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O utopista
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Ele acredita que o chão é duro
Que todos os homens estão presos
Que há limites para a poesia
Que não há sorrisos nas crianças
Nem amor nas mulheres
Que só de pão vive o homem
Que não há um outro mundo.
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Murilo Mendes
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(Imagem: N. Card)

12 de out. de 2006

4 de out. de 2006

23 de set. de 2006

Chegou a primavera ...

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Botticelli - Primavera (Detalhe)
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Esta é uma primavera diferente, com as matas intactas, as árvores cobertas de folhas, — e só os poetas, entre os humanos, sabem que uma Deusa chega, coroada de flores, com vestidos bordados de flores, com os braços carregados de flores, e vem dançar neste mundo cálido, de incessante luz.
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Cecília Meireles
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17 de set. de 2006

Noturno

Teresa Dias Coelho
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NOTURNO
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Horas vazias da noite
Sem vozes
Sem pássaros
Sem a claridade das manhãs.
Momento das divagações
Da consciência do tempo
Da crua sensação de fragilidade
Da contingência incomensurável...
Noite infinita da minha vida
Presença constante do adeus .
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Leonor Cordeiro

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16 de set. de 2006

Presente delicado de amiga ....

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Perfume
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...e estavas em Marília
aqui perto
tu que vives em Minas
bem que senti um perfume
que só em sonhos
árcades...
distantes.
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Irene Vieira
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14 de set. de 2006

Meus rabiscos...

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Tamara de Lempicka


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Suas garras são pequenas mas frias e fortes
Seu choro é baixo mas longo e vazio
Sua voz é pausada mas ferina
Disfarce, é o seu nome .
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Leonor Cordeiro
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1 de set. de 2006

Inquietação

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Inquietação
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Chegaram os oito anos.
Menina pula
Menina cai
Menina chora
Menina ri.
Doutora, e essas bolinhas no rosto?
- São os hormônios ...
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Chegaram os oito anos
Chegaram os hormônios no corpo da menina .
Menina pula
Menina cai
Menina chora
Menina ri .
Menina pula, cai, chora, ri, tudo ao mesmo tempo .
Menina pi-pó-ca !
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Leonor Cordeiro
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23 de ago. de 2006

Metamorfose

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,
,
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Metamorfose
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,
O olhar da menina
Passou pela mãe
Passou pelo pai
Pela luz do abajur
E se perdeu no emaranhado de plantas
no fundo do aquário .
Agora , ela é peixe ...
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Leonor Cordeiro
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14 de ago. de 2006

Para Julie ...

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IMAGEM
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O gato apareceu de repente na montanha. Era um pobre bichinho débil, que miava silêncio. Preto, parecia cinzento – de tão sujo. E, além de sujo, maltratado, com um olho desfazendo-se em gelatina, e uma orelha empapada de sangue. Olhou para mim tristemente, como nós às vezes olhamos para Deus . E eu, certamente, queria ajudá-lo .
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Mas então vi como aquele caminho deserto se fazia subitamente povoado; o espírito das superstições dizia-me : “olha que é um gato preto!” E o espírito da ciência murmurava-me : “Está cheio de parasitas, que te infestarão !” E esse vil espírito prático da era contemporânea aparteava : “Ademais, como podes ajudar, se estas num caminho deserto e sem recursos, onde não se avista nem um teto nem um veículo?” E só o espírito do amor segredava tímido: “Toma-o nas mãos e leva-o contigo ! Verás que, no teu colo, seus olhinhos lacrimosos se fecharão, adormecidos; sua fome se esquecerá, suas feridas fecharão ...” Mas o espírito do amor segreda com tanta timidez!
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Pela montanha deserta, descíamos os dois, e subia o vento.Pobre gatinho preto, de cauda arrepiada como uma escova de lavar frascos ! Manquejava também de um pé. Tão ralo tinha o pêlo que se lhe viam luzir as pulgas sobre os arcos das costelas. Na orelha machucada, o sangue secara-lhe como uma florzinha vermelha, muito escura.
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Tão grande era a sua urgência de socorro, que, embora trôpego, pequenino, doente, às vezes caminhava mais depressa do que eu. Ia esperar –me adiante, e levantava para os meus os seus olhos sofredores e o vazio miado, que era, a cada instante, como o seu último sopro.
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Mas, quando me via chegar, punha de lado a sua fadiga e o seu descanso, e recomeçava o caminho, com uma espécie de fé sempre renovada de peregrino que se dirige ao lugar da salvação .
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Na montanha , porém, não havia salvação nenhuma para quem padecesse de fome ou sede. A assembléia dos espíritos que me rodeavam buscavam pôr-se de acordo, sem satisfação: as pulgas eram inegáveis – dizia o espírito científico; o da superstição contradizia-se , de tão rico: às vezes os gatos pretos dão sorte ...; o espírito prático, o vil espírito de tempo, mostrava-me com uma clareza de relatório oficial que gasolina não existia, e a primeira venda devia estar, tanto para uma lado, como para o outro, a um bom quilômetro, pelo menos. Só o espírito do amor segredava que tudo isso eram conjecturas idiotas, e que devia tomar nas mãos o pobre bichinho abandonado e leva-lo sobre o calor do meu peito até um lugar qualquer onde o sentisse , afinal, protegido e consolado .
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E o gatinho trotava, ora atrás de mim, ora na minha frente. Parecia impossível que pudesse pular assim, tão magrinho, tão seco, tão altimoso. Mas pulava . Se não fosse o aspecto que tinha, dir-se-ia que brincava, que brincava como uma cavalinho caprichoso num circo de elfos. Umas duas vezes prendeu a perna no ralo da sarjeta. Daí em diante, fez-se mais cauteloso, evitando-as, quando as encontrava . E tudo isso dava graça à companhia, como quando se descobrem as novidades de uma criança. Mal, porém, se reparava no seu esqueleto no ofego de seu tórax, e naquela umidade de seus olhinhos nublados, vinha um aperto ao coração – eo grande céu , a verde floresta, o ouro do Sol derramando-se pela estrada, o mundo e as criaturas tornavam-se enigmáticos, ferozes e inúteis .
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O espírito do amor segredava-me, cada vez mais tímido : “Vê como tem acompanha. Como poderás dormir tranqüila sem teres socorrido o miserável que pediu o teu auxílio?” E o espírito da superstição murmurava: “Isto é para que não te esqueças que deixaste de ser caridosa, um dia. Aqui anda uma aviso do ultramundo, sob a forma de um gato preto !” E o espírito científico replicava com uma insolência de dezoito anos: “Qual ultramundo ! Isto é apenas um gato sem casa, maltratado pelo vadios, e que vai atrás de ti por instinto, procurando alimento e sossego” . E o tal espírito prático se arreliava :”Onde estão os hospitais, para os bichanos que ninguém quer? Que há de fazer uma pessoa num caso destes? As pulgas estão ali, evidentes; a gasolina positivamente não está em lugar nenhum . Ninguém pode andar sempre com um sanduíche no bolso e uma garrafa de leite embaixo do braço .... E ainda esta carga de preconceitos morais ! ...” O espírito do amor segredava entristecido : “Não deixes teu coração endurecer com o que estás ouvindo ... Faze alguma coisa por este pobre animal que te segue arquejante. Lembra-te se algum dia fosse atrás de alguma coisa que fugisse, fugisse.... Reflete que algum dia poderás ir ...” E volvia o espírito científico: “Mas um gato, afinal de contas, não é gente. E o sofrimento do amor suavemente insistia ; “Tudo é um sofrimento só, de alto a baixo, na criação . Compadece-te desse que te acompanha, pequena coisa que o destino pôs no teu caminho, problema que o mundo inteiro está vendo como resolverá ...”
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Então, ao meio dos espírito sentei-me. E o gato parou diante de mim, com a hirta cauda par ao lado, uma orelhinha murcha, e outra em pé. Seus olhos chorosos não tinham voz humana : puro choro. E sua boca pálida arreganhou-se num miado sem som: piro bocejo. Aquietou-se mirando-me. E agora um velhinho muito velho, emalhado em lã cinzenta, lacrimejando de velhice e de experiência. Observava-me , sem dizer mais nada, sem pedir nada. Sua sombra não media um palmo; minha sombra não mediu um metro. A sombra das árvores era imensa e balançava-se no chão, misturando estrelinhas de ouro. Trinavam pássaros, algo e longe. A montanha subia, subia . Quanto caminho andado! E aquele pobre bichinho descera-o todo atrás de mim, tão magrinho, tão infeliz, alternando as perninhas trôpegas , e chamando-me com sua voz desaparecida .
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Por que não nascem entre as pedras arroios de leite par aos gatinhos abandonados? Ah! Irmão Francisco, os lírios andam vestidos de seda, e os passarinhos por toda a parte encontram grão que os sustente, mas os gatinhos, bem vês, não tem rato que se distraiam e o transeunte humano nem o poder socorrer nem explicar .
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Passará talvez um leiteiro com algum carrinho. Vai batendo uma sineta melodiosa como um anúncio de festa. E eu lhe direi: vende-me meio litro de leite para esse bichinho abandonado... E o leiteiro será como um pastor antigo, que sobe para a sua serra onde tem ovelhas peludas e mansas, e me dará leite e queijinhos brancos e tenros, que todos comeremos à sombra das árvores, numa intimidade casta de écloga. O gatinho se lamberá todo com uma língua novinha, rósea que nem coral, e sorrirá agradecendo, e terá forças para trincar aquelas pulgas que passam como miçangas pelas suas costelas, e depois, limpo e refeito, brincará, para vermos, de pegar a sua sombra, de saltar ao tronco das árvores ou de morder a ponta da sua própria cauda.
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E o leiteiro dirá: “Ide , senhora, que o levo comigo, para entreter os meninos da minha granja. “ E as árvores se inclinarão, cheias de pássaros e flores, e o gatinho irá pulando serra acima, enquanto o leiteiro, pra o divertir, cantará uma cantiga engraçada sobre a vida das ratazanas ...
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Mas o leiteiro não aparecia. Pensei que ele acabasse por adormecer ali sentado, pois seus olhos ficavam cada vez mais pegajosos e seu focinho de ancião freqüentador de arquivos tomava um ar cada vez mais resignado e desistido. E eu lhe dizia: “meu amigo, não sei qual é a venda mais longe: se a lá de cima, se a lá de baixo... Como vais resistir a caminhar mais do dobro do que até aqui andaste?"
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E o espírito do amor implorava: “Toma-o no teu colo!” E lembrei-me da amiga que apanhou um gatinho assim à porta do cinema e levou-o para a casa de chá, escandalizando todas as senhoras enchapeladas que comiam sem fome, carregadas de balangandãs. E os espelhos em redor viram descer para o gatinho um doce das mil e uma noites, pura nata e massa folhada, onde a fome do desgraçado se perdia num delírio de suavidades brancas, num êxtase de manteiga e baunilha .
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Mas nenhum pássaro trouxe no bico o milagre necessário ao gatinho preto. De nenhuma árvore caiu esse milagre suspirado. Pedras, Sol, troncos, formigas. Nem água! – nem água brilhava em nenhuma rocha, nem se deixava ao menos ouvir no segredo das folhas ou das areias .
Então, o gatinho veio tocar-me os pés com humildade. Isto é o que mais me custa lembrar: a meiguice com que inclinava a cabecinha doente nos meus sapatos, como a perguntar-lhes: “Por que pararam? Levem-me a algum lugar! Não vêem que estou tão precisado, tão mortinho de sede e fome?”
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E levantei-me e recomecei a andar – triste pelo gatinho como pela infelicidade de um povo ou de um parente. E sem esperança de nada . E fui andando. E ele atrás de mim. E fazia cabriolas. E queria andar tão depressa, que até atrapalhava as quatro perninhas. E ia de olhos no chão, disciplinado, com um ar de funcionário submisso, mas de repente virara menino travesso, e dava pulinhos, logo perdia as forças e levantava a cabeça com boca suplicante e olhos dissolvidos.
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Nessa altura é que nos aconteceu uma coisa extraordinária: vinha subindo a montanha uma pessoa. E o pobre bichinho, que devia estar zonzo de canseira, confundiu os pés que subiam com os que desciam, e passou a acompanhar o transeunte inesperado.
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Veio-me então a saudade de perdê-lo. E a melancolia de lhe não ter dado nenhuma ajuda. Perguntei aos espíritos que me cercavam o que devia fazer. E um deles – não sei qual – me respondeu que talvez fosse melhor deixa-lo com o seu destino. (Devia ser o espírito prático, que é o mais covarde ...) E arrazoava: o passante podia levar consigo o sanduíche que me faltava... (Mas o espírito do amor, esse eu bem sei que ia chorando, dentro de mim, desconvencido e inconsolável.)
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E agora tenho a lembrança da montanha, poderosa, bela, virente, e, em seu flanco, a imagem do gatinho triste, como coisa para toda a vida.
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Primeiro, pensei que aquilo era apenas uma aventura curiosa, que esqueceria ao chegar à cidade .E aprecia estar esquecido. Mas esta noite sonhei com ele. Sonhei com o gatinho que já deve ter morrido, que morreu certamente àquela tarde mesma. E disse para a sua imagem: “Mas eu te amei antes de morreres ...” Depois, achei a frase idiota. Nem ao menos original. Parecia a última fala de Otelo.
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Cecília Meireles
(Coleção Melhores Crônicas)
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10 de ago. de 2006

Fala Helena ...

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Deixa esse continente inóspito que habitas.
Iça teu sonho - vela branca - em altos mastros
E singra, solitário, rumo aos astros.
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Nem tempo nem espaço a perturbar a viagem...
Navegas ao sabor do pensamento
Por águas infinitas.
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(Helena Kolody)
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Foto de Ricardo Tavares
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7 de ago. de 2006

Parabéns Haline !

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Fico muito feliz com a vitória da Haline
que conheci através desse blog .
Mais uma brasileira batalhando e vencendo
em outras terras ...
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30 de jul. de 2006

Fala Quintana ...

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Nasci em Alegrete, em 30 de julho de 1906. Creio que foi a principal coisa que me aconteceu. E agora pedem-me que fale sobre mim mesmo. Bem! Eu sempre achei que toda confissão não transfigurada pela arte é indecente. Minha vida está nos meus poemas, meus poemas são eu mesmo, nunca escrevi uma vírgula que não fosse uma confissão. Ah! mas o que querem são detalhes, cruezas, fofocas... Aí vai! Estou com 78 anos, mas sem idade. Idades só há duas: ou se está vivo ou morto. Neste último caso é idade demais, pois foi-nos prometida a Eternidade.

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Nasci no rigor do inverno, temperatura: 1grau; e ainda por cima prematuramente, o que me deixava meio complexado, pois achava que não estava pronto. Até que um dia descobri que alguém tão completo como Winston Churchill nascera prematuro - o mesmo tendo acontecido a sir Isaac Newton! Excusez du peu... Prefiro citar a opinião dos outros sobre mim. Dizem que sou modesto. Pelo contrário, sou tão orgulhoso que acho que nunca escrevi algo à minha altura. Porque poesia é insatisfação, um anseio de auto-superação. Um poeta satisfeito não satisfaz. Dizem que sou tímido. Nada disso! sou é caladão, introspectivo. Não sei porque sujeitam os introvertidos a tratamentos. Só por não poderem ser chatos como os outros?

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Exatamente por execrar a chatice, a longuidão, é que eu adoro a síntese. Outro elemento da poesia é a busca da forma (não da fôrma), a dosagem das palavras. Talvez concorra para esse meu cuidado o fato de ter sido prático de farmácia durante cinco anos. Note-se que é o mesmo caso de Carlos Drummond de Andrade, de Alberto de Oliveira, de Erico Verissimo - que bem sabem (ou souberam) o que é a luta amorosa com as palavras.
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(Texto escrito pelo poeta para a revista IstoÉ de 14/11/1984)
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Retirei esse texto do Site Comemorativo Centenário Mario Quintana : http://www.estado.rs.gov.br/marioquintana/
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29 de jul. de 2006

Cada um que passa


Foto de Elliott Erwitt
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CADA UM QUE PASSA
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Cada um que passa em nossa vida,
passa sozinho,
pois cada pessoa é única
e nenhuma substitui a outra.
Cada um que passa em nossa vida,
passa sozinho,
mas não vai só, nem nos deixa só:
leva um pouco de nós mesmos,
deixa um pouco de si mesmo.
Há os que levaram muito,
mas não há os que não deixaram nada.
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( Antoine Saint-Exupéry)
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26 de jul. de 2006

Sarau literário ...

No dia 22 de julho, com a presença de artistas, músicos e poetas,
a poesia de Antônio Lázaro de Almeida Prado, mais uma vez
brilhou na noite paulista num dos salões da Casa das Rosas .
Leia o editorial do novo site OBSERVADOR CULTURAL para saber mais
noticias desse encontro .
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O querido poeta Antônio Lázaro de Almeida Prado e a sua filha,

a escritora e agente literária Fernanda de Almeida Prado

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PERDE-GANHA
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Perdes as penas, Pássaro ...
Nova penugem reveste
Teu corpo canoro .
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Eu ganho penas, Poeta,
Com novos desenganos
Enfeito a alma .
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O Tempo nos despoja, Permanece
Imperturbado, no ar
O nosso canto
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(Antônio Lázaro de Almeida Prado)
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9 de jul. de 2006

Pré-história

Matisse
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Pré-história
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Mamãe vestida de rendas
Tocava piano no caos.
Uma noite abriu as asas
Cansada de tanto som,
Equilibrou-se no azul,
De tonta não mais olhou
Para mim, para ninguém!
Cai no álbum de retratos.
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Murilo Mendes
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4 de jul. de 2006

Canal do Livro !

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Conheci o Canal do Livro no Lousa Digital da querida educadora
Sônia Bertocchi.
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Conheça o Canal do Livro e assista aos melhores LivroClips.
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LivroClips:
a arte de misturar letras, imagens e sons para sacudir a poeira do mundo literário !
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2 de jul. de 2006

Odes de Ricardo Reis

" Hourglass " de Luciana Teruz
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.Cada coisa a seu tempo tem seu tempo.
Não florescem no inverno os arvoredos,
Nem pela primavera
Têm branco frio os campos.
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À noite, que entra, não pertence, Lídia,
O mesmo ardor que o dia nos pedia.
Com mais sossego amemos
A nossa incerta vida.
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À lareira, cansados não da obra
Mas porque a hora é a hora dos cansaços,
Não puxemos a voz
Acima de um segredo,
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E casuais, interrompidas, sejam
Nossas palavras de reminiscência
(Não para mais nos serve A negra ida do Sol) ?
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Pouco a pouco o passado recordemos
E as histórias contadas no passado
Agora duas vezes
Histórias, que nos falem
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Das flores que na nossa infância ida
Com outra consciência nós colhíamos
E sob uma outra espécie
De olhar lançado ao mundo.
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E assim, Lídia, à lareira, como estando,
Deuses lares, ali na eternidade,
Como quem compõe roupas
O outrora compúnhamos
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Nesse desassossego que o descanso
Nos traz às vidas quando só pensamos
Naquilo que já fomos,
E há só noite lá fora.
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Odes de Ricardo Reis
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26 de jun. de 2006

Linguage dos óio

Ernani Cortat
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Linguage dos óio
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Quem repara o corpo humano
E com coidado nalisa,
Vê que o Autô Soberano
Lhe deu tudo o que precisa,
Os orgo que a gente tem
Tudo serve munto bem,
Mas ninguém pode negá
Que o Auto da Criação
Fez com maior prefeição
Os orgo visioná.
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Os óio além de chorá,
É quem vê a nossa estrada
Mode o corpo se livrá
De queda e barruada
E além de chorá e de vê
Prumode nos defendê,
Tem mais um grande mistér
De admirave vantage,
Na sua muda linguage
Diz quando qué ou não qué.
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Os óios consigo tem
Incomparave segredo,
Tem o oiá querendo bem
E o oiá sentindo medo,
A pessoa apaixonada
Não precisa dizê nada,
Não precisa utilizá
A língua que tem na bôca,
O oiá de uma caboca
Diz quando qué namorá.
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Munta comunicação
Os óio veve fazendo
Por izempro, oiá pidão
Dá siná que tá querendo
Tudo apresenta na vista,
Comparo com o truquista
Trabaiando bem ativo
Dexando o povo enganado,
Os óios pissui dois lado,
Positivo e negativo.
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Mesmo sem nada falá,
Mesmo assim calado e mudo,
Os orgo visioná
Sabe dá siná de tudo,
Quando fica namorado
Pela moça despresado
Não precisa conversá,
Logo ele tá entendendo
Os óios dela dizendo,
Vica lá que eu vivo cá.
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Os óios conversa munto
Nele um grande livro inziste
Todo repreto de assunto,
Por izempro o oiá triste
Com certeza tá contando
Que seu dono tá passando
Um sofrimento sem fim,
E o oiá desconfiado
Diz que o seu dono é curpado
Fez arguma coisa ruim.
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Os óis duma pessoa
Pode bem sê comparado
Com as água da lagoa
Quando o vento tá parado,
Mas porém no mesmo istante
Pode ficá revortante
Querendo desafiá,
Infuricido e valente;
Neste dois malandro a gente
Nunca pode confiá.
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Oiá puro, manso e terno,
Protetó e cheio de brio
É o doce oiá materno
Pedindo para o seu fio
Saúde e felicidade
Este oiá de piedade
De perdão e de ternura
Diz que preza, que ama e estima
É os óio que se aproxima
Dos óio da Virge Pura.
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Nem mesmo os grande oculista,
Os dotô que munta estuda,
Os mais maió cientista,
Conhece a lingua muda
Dos orgo visioná
E os mais ruim de decifrá
De todos que eu tô falando,
É quando o oiá é zanoio,
Ninguém sabe cada óio
Pra onde tá reparando.
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(Patativa do Assaré - Antônio Gonçalves da Silva )
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