24 de jun. de 2007

Poema em linha reta

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Edvard Munch

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Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
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E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,

Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
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Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...
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Quem me dera ouvir de alguém a voz humana

Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
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Arre, estou farto de semideuses!

Onde é que há gente no mundo?
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Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

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Poderão as mulheres não os terem amado,

Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
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Álvaro de Campos

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Um comentário:

Naeno disse...

BAILARINA

Meus olhos foram até o camarim
Seguindo aquela moça
De saia de asas de passarinhos,
Que enquanto dançava me aquietava
Em meu lugar feito um passarinho
Que acabara de comer
E via do ninho
O vôo do pai abraçando o céu.
Meus olhos seguiram dentro do seu agasalho,
De borboleta voando na manhã,
Suspensa do chão,
Tão longe de mim no meio das outras.
O invento que ela mostrou
De levitar fora das órbitas do tablado,
Deixou meu olhar ofuscado,
Mirando entre ela e o chão
A distância, a altura do seu vôo,
Como andorinha
Que se lança do cume da igreja,
E graceja enquanto dança.
Meus olhos furtivos,
Seguiram a menina leve,
E ainda estão por lá
E enquanto não se eleve,
O som das trombetas,
O cortinando de veludo,
Meus olhos querem dela,
Espiar tudo,
A calcinha cor de prata,
A saia de asas quase branca,
A toca no cabelo, a franja,
Meus olhos irão atormenta-las.

Um beijo
Naeno