29 de jun. de 2010

Quatro dias com Cassiano Ricardo ...

Dedico essa postagem ao poeta José Carlos Brandão .
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Quarto dia...

Jacek Yerka
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Relógio
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Diante de coisa tão doída
conservemo-nos serenos.
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Cada minuto de vida
nunca é mais, é sempre menos.
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Ser é apenas uma face
do não-ser, e não do ser.
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Desde o instante em que se nasce
já se começa a morrer.
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Cassiano Ricardo
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28 de jun. de 2010

Quatro dias com Cassiano Ricardo...

Terceiro dia ...
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Wyeth Andrew .
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Imemorial.

Não fui quem sou, quando nasci.
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Nem sou quem sou, quando amo.
Nem quando sofro.
Porque coexisto. Porque a angústia
é uma herança.

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Só me aproximo de mim mesmo
quando fujo,
atravesso a fronteira,
ou me defendo, ou fico triste.

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Ou quando sinto a rosa
secreta e quente da vergonha
subir-me à face.

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O mar me bate à porta,
como um grito da origem.
Mas como descobrir
a onda imemorial que me trouxe?
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Cassiano Ricardo
in Um dia após o outro,1947
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27 de jun. de 2010

Quatro dias com Cassiano Ricardo...

Segundo dia:
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POÉTICA
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1
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Que é a Poesia?
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uma ilha
cercada
de palavras
por todos
os lados.
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2
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Que é o Poeta?
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um homem
que trabalha o poema
com o suor do seu rosto.
Um homem
que tem fome
como qualquer outro
homem.
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Cassiano Ricardo
(In Jeremias Sem-Chorar. São Paulo, José Olympio, 1964)
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24 de jun. de 2010

Quatro dias com Cassiano Ricardo...

Primeiro dia :
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Quando estou triste, leio Musset. Se a minha tristeza tem um sabor português (há uma tristeza para cada terra) recorro ao Antônio Nobre que é mais chegado à intimidade de minha raça. Quando estou áspero, exaltado no meu apego à terra, leio Euclides de Os Sertões. Quando necessito de mocidade para meu espírito, leio o velho João Ribeiro nacional ou o velho Bernard Shaw estrangeiro. Quando fico meio céptico, que fazer? Sirvo-me do Anatole dissolvente para dissolver em água-de-rosas o meu cepticismo. Quando me ponho a brincar com realidades mais sérias, leio o incrível Wells. Quando quero escarnecer dos homens, leio Voltaire. Quando estou farto de artifício literário e procuro maior soma de verdade humana e profunda, leio Cervantes. Quando me enfastiam as verdades correntes ou os conceitos usuais da vida, agarro-me a Chesterton. Poderia fazer o contrário: ler Voltaire ou Juvenal quando me sentisse triste e Musset ou Antônio Nobre (ou o nosso Rodrigues de Abreu, tão humilde na sua desesperança) quando me sentisse alegre. Mas não. O mal cura-se com o próprio mal. O bem paga-se com o próprio bem. A estante de minha sensibilidade é feita de momentos. E cada escritor tem, aí, o seu momento próprio e inevitável. Também, quando quero ser simples ou ser eu mesmo, expulso essa gente toda do meu convívio. Abro a janela que dá para a vida e restabeleço, como disse alguém, as minhas relações líricas com a Natureza. E faço de cada dia uma página branca. E faço de cada noite uma reticência de estrelas..."
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Cassiano Ricardo
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Encontrei essa preciosidade lendo o discurso de posse de Cassiano Ricardo na Academia Brasileira de Letras.
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O leitor e o livro...

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( J. Crew)
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21 de jun. de 2010

Ruy Belo ...

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E TUDO ERA POSSÍVEL
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Na minha juventude antes de ter saído
da casa de meus pais disposto a viajar
eu conhecia já o rebentar do mar
das páginas dos livros que já tinha lido
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Chegava o mês de maio era tudo florido
o rolo das manhãs punha-se a circular
e era só ouvir o sonhador falar
da vida como se ela houvesse acontecido
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E tudo se passava numa outra vida
e havia para as coisas sempre uma saída
Quando foi isso? Eu próprio não o sei dizer
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Só sei que tinha o poder duma criança
entre as coisas e mim havia vizinhança
e tudo era possível era só querer
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Ruy Belo
(In Homem de Palavra(s), Liboa, Editorial Presença )
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20 de jun. de 2010

Helena Kolody...

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LONGE
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Às vezes,
tudo é tão longe em mim...
Meu viver parece uma história
que alguém sonhou
há muito tempo,
num país distante.

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Helena Kolody

(In VIAGEM NO ESPELHO, Edições Criar, Curitiba, 2001, p. 65 )

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19 de jun. de 2010

Sobre a poesia...

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"A poesia vem como uma febre. De repente lhe vem e aí você agradece. Você nem sabe explicar por que tem esse dom".


Hilda Hist
(Fonte: Correio Braziliense, 15/02/1998 )

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18 de jun. de 2010

José Saramago...

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"Agora há unanimidade quanto a José Saramago. Toda a gente diz que ele morreu. E é verdade."

José Saramago ...

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Retrato do poeta quando jovem
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Há na memória um rio onde navegam
Os barcos da infância, em arcadas
De ramos inquietos que despregam
Sobre as águas as folhas recurvadas.
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Há um bater de remos compassado
No silêncio da lisa madrugada,
Ondas brancas se afastam para o lado
Com o rumor da seda amarrotada.
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Há um nascer do sol no sítio exacto,
À hora que mais conta duma vida,
Um acordar dos olhos e do tacto,
Um ansiar de sede inextinguida.
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Há um retrato de água e de quebranto
Que do fundo rompeu desta memória,
E tudo quanto é rio abre no canto
Que conta do retrato a velha história.
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José Saramago
(In OS POEMAS POSSÍVEIS, Editorial CAMINHO, Lisboa, 1981)
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Poema à boca fechada
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Não direi:
Que o silêncio me sufoca e amordaça.
Calado estou, calado ficarei,
Pois que a língua que falo é de outra raça.
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Palavras consumidas se acumulam,
Se represam, cisterna de águas mortas,
Ácidas mágoas em limos transformadas,
Vaza de fundo em que há raízes tortas.
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Não direi:
Que nem sequer o esforço de as dizer merecem,
Palavras que não digam quanto sei
Neste retiro em que me não conhecem.
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Nem só lodos se arrastam, nem só lamas,
Nem só animais bóiam, mortos, medos,
Túrgidos frutos em cachos se entrelaçam
No negro poço de onde sobem dedos.
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Só direi, Crispadamente recolhido e mudo,
Que quem se cala quando me calei
Não poderá morrer sem dizer tudo.
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José Saramago
(In OS POEMAS POSSÍVEIS, Editorial CAMINHO, Lisboa, 1981)
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12 de jun. de 2010

O azul ou o branco

( imagem do blog do autor)
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Teria sido num tempo em que as tardes eram suficientemente extensas para que se pudesse dormir, tranquila, a sesta, as noites tão grandes que era possível, sem esforço, ficar a ler. Teria sido num tempo em que numa daquelas janelas eu vi o alvorecer de uma ideia e por causa dela decidi não regressar. Dias depois zarparia o último navio e no vazio do porto eu compreenderia, enfim, o mundo que me restava. Teria sido num tempo em que se poderia optar por uma viagem ou por uma permanência. Hoje, olhando-à à fotografia da casa, de cuja janela tudo me sucedeu, hesito se é o azul ou o branco o automóvel que lá deixei. Não sei em nome de que ideia, por causa de que ilusão, ou a caminho de que erro, mas parti, do mesmo porto, num outro navio, a caminho do mundo em falta, a parte restante de mim.
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José António Barreiros
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3 de jun. de 2010

Poema

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O poema me levará no tempo
Quando eu já não for eu
E passarei sozinha
Entre as mãos de quem lê
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O poema alguém o dirá
Às searas
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Sua passagem se confundirá
Como rumor do mar com o passar do vento
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O poema habitará
O espaço mais concreto e mais atento
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No ar claro nas tardes transparentes
Suas sílabas redondas
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(Ó antigas ó longas
Eternas tardes lisas)
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Mesmo que eu morra o poema encontrará
Uma praia onde quebrar as suas ondas
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E entre quatro paredes densas
De funda e devorada solidão
Alguém seu próprio ser confundirá
Com o poema no tempo
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Sophia de Mello Breyner

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