29 de out. de 2009

ta_manco

Sandra Freij
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qual verso escreverei e com que rimas
e mágoa e dor iguais pisam por cima
se o sonho não resiste e a bailarina
quebrou o pé
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27 de out. de 2009

O lutador

A luta de Jacó com o anjo -Alexander Louis Leloir, 1865

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Lutar com palavras

é a luta mais vã.
Entanto lutamos
mal rompe a manhã.
São muitas, eu pouco.
Algumas, tão fortes
como um javali.
Não me julgo louco.
Se o fosse, teria
poder de encantá-las.
Mas lúcido e frio,
apareço e tento
apanhar algumas
para meu sustento
num dia de vida.
Deixam-se enlaçar,
tontas à carícia
e súbito foge
me não há ameaça
e nem há sevícia
que as traga de novo
ao centro da praça.
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Insisto, solerte.

Busco persuadi-las.
Ser-lhes-ei escravo
de rara humildade.
Guardarei sigilo
de nosso comércio.
Na voz, nenhum travo
de zanga ou desgosto.
Sem me ouvir deslizam,
perpassam levíssima
se viram-me o rosto.
Lutar com palavras
parece sem fruto.
Não têm carne e sangue…
Entretanto, luto.
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Palavra, palavra

(digo exasperado),
se me desafias,
aceito o combate.
Quisera possuir-te
neste descampado,
sem roteiro de unha
ou marca de dente
nessa pele clara.
Preferes o amor
de uma posse impura
e que venha o gozo
da maior tortura.
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Luto corpo a corpo,

luto todo o tempo,
sem maior proveito
que o da caça ao vento.
Não encontro vestes,
não seguro formas,
é fluido inimigo
que me dobra os músculos
e ri-se das normas
da boa peleja.
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Iludo-me às vezes,

pressinto que a entrega
se consumará.
Já vejo palavras
em coro submisso,
esta me ofertando
seu velho calor,
aquela sua glória
feita de mistério,
outra seu desdém,
outra seu ciúme,
e um sapiente amor
me ensina a fruir
de cada palavra
a essência captada,
o sutil queixume.
Mas ai! é o instante
de entre
abrir os olhos:
entre beijo e boca,
tudo se evapora.
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O ciclo do dia

ora se conclui e o inútil duelo
jamais se resolve.
O teu rosto belo,
ó palavra, esplende
na curva da noite
que toda me envolve.
Tamanha paixão
e nenhum pecúlio.
Cerradas as portas,
a luta prossegue
nas ruas do sono.
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Carlos Drummond de Andrade - Nova Reunião, p. 94-97

26 de out. de 2009

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Nossa existência é tão fugaz que, se não escrevermos à noite o que aconteceu pela manhã, o trabalho nos atordoa e não nos sobra tempo para registrá-lo. Isto não impede que lancemos ao vento as horas que são para o homem as sementes da eternidade.

Chateaubriand, Mémoires d'outre-tombe
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23 de out. de 2009

A canção do tédio

Toni Frissell

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Anda uma estrela pelo céu,

sozinha, arrastando um véu

de viúva.

- É a chuva.

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Rola um soluço leve no ar,

bem longo no seu rolar,

bem lento.

- É o vento.

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Perpassa o passo oco de algum

fantasma, quieto como um

segredo.

- É o medo.

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Batem à porta. Abro. Quem é?

Uma alta sombra, de pé,

se eleva.

- É a treva.

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Mas, desde então, alguém está

comigo. É inútil. Não há

remédio.

- É o tédio.

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Guilherme de Almeida

O leitor e o livro...

Toko Ohmori

21 de out. de 2009

Procura da poesia

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Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.
Não faças poesia com o corpo,
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.
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Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro

são indiferentes.
Nem me reveles teus sentimentos,
que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.
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Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.

O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.
Não é música ouvida de passagem; rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.
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O canto não é a natureza

nem os homens em sociedade.
Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.
A poesia (não tires poesia das coisas)
elide sujeito e objeto.
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Não dramatizes, não invoques,

não indagues. Não percas tempo em mentir.
Não te aborreças.
Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,
vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família
desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.
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Não recomponhas

tua sepultada e merencória infância.
Não osciles entre o espelho e a
memória em dissipação.
Que se dissipou, não era poesia.
Que se partiu, cristal não era.
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Penetra surdamente no reino das palavras.

Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.
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Chega mais perto e contempla as palavras.

Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?
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Repara:

ermas de melodia e conceito,
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.
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Carlos Drummond de Andrade – p. 111 e 112 - Nova Reunião: 19 livros de poesia - Editora José Olympio

20 de out. de 2009

(ESCRE)VER-ME

Lavinia Fontana
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nunca escrevi
sou
apenas o tradutor de silêncios

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a vida
tatuou-me nos olhos
janelas
em que me transcrevo e apago

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sou
um soldado
que se apaixona
pelo inimigo que vai matar

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Mia Couto

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18 de out. de 2009

Andrew Wyeth
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O ofício da vida é um enriquecimento contínuo, desde que saibamos guardar-lhe as imagens e emoções no nosso mundo de reminiscências, com a inteção de fruí-las nos momentos apropriados. Para tornar ao passado, no devaneio desses momentos, não é preciso dar as costas ao presente: o dia de ontem é que reflui ao dia de hoje, trazido por uma fulguração de lembranças, e daí, nessas ocasiões, o sabor da dupla vida - a de agora e a de outrora, harmonizadas na captação do tempo perdido.
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Josué Montello - Diário Completo (VolumeI), p. 1254


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16 de out. de 2009

Breve encontro


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Este é o amor das palavras demoradas
Moradas habitadas
Nelas mora
Em memória e demora
O nosso breve encontro com a vida

.Sophia de Mello Breyner Andresen

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13 de out. de 2009

Café - Portinari
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Vim da terra vermelha e do cafezal.
As almas penadas, os brejos e as matas virgens
Acompanham-me como o espantalho,
Que é o meu auto-retrato.
Todas as coisas frágeis e pobres
Se parecem comigo.
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Candido Portinari
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10 de out. de 2009

Queridos amigos,


Sempre que minha saúde exige cuidados especiais fico quieta no meu canto para dar conta do recado. Vejo essa minha postura como limites que tenho frente a doenças crônicas que precisam de qualquer atenção maior.
Agradeço os comentários carinhosos que recebi de todos vocês.
Com afeto,

Leonor



Francisco de Zurbaran



Centenas de versos se enfileiraram
na soleira da porta.
Minha dor impede
que as palavras
quebrem o silêncio
dando significado às coisas.
O reino da solidão se instalou.
Estranha maneira de sobreviver a peste.

Leonor Cordeiro

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Presente que recebi do querido poeta José Carlos Brandão :

Leonor, versifiquei à minha maneira os seus versos. Lembre-se que continuam seus. Este é um exercício de poetar, em solidariedade:

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Os versos são cordeiros à soleira da porta.

Convivo com a minha dor e o frio do silêncio.

Sou rei da solidão sem palavras, sem sentido.

Sou estranho a mim mesmo, mas, solerte, sobrevivo.

José Carlos Brandão

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4 de out. de 2009

Gracias a La Vida

.Gracias a La Vida
(Violeta Parra)
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Gracias a la vida que me ha dado tanto.
Me dio dos luceros, que cuando los abro,
Perfecto distingo lo negro del blanco
Y en el alto cielo su fondo estrellado
Y en las multitudes el hombre que yo amo.
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Gracias a la vida que me ha dado tanto.
Me ha dado el oído que en todo su ancho
Graba noche y día, grillos y canarios,
Martillos, turbinas, ladridos, chubascos,
Y la voz tan tierna de mi bien amado
.
Gracias a la vida que me ha dado tanto.
Me ha dado el sonido y el abecedario;
Con el las palabras que pienso y declaro:
Madre, amigo, hermano, y luz alumbrando
La ruta del alma del que estoy amando.
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Gracias a la vida que me ha dado tanto.
Me ha dado la marcha de mis pies cansados;
Con ellos anduve ciudades y charcos,
Playas y desiertos, montañas y llanos,
Y la casa tuya, tu calle y tu patio.
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Gracias a la vida que me ha dado tanto.
Me dio el corazón que agita su marco
Cuando miro el fruto del cerebro humano,
Cuando miro al bueno tan lejos del malo,
Cuando miro al fondo de tus ojos claros.
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Gracias a la vida que me ha dado tanto.
Me ha dado la risa y me ha dado el llanto.
Así yo distingo dicha de quebranto,
Los dos materiales que forman mi canto,
Y el canto de ustedes que es mi mismo canto,
Y el canto de todos que es mi propio canto.
Gracias a la vida que me ha dado tanto.