. . Numa palestra , em Paris, na Sornonne, Jorge Luis Borges fez esta confissão pungente: "Sou cego, sou surdo para a música, não leio os jornais, não tenho muita oportunidade de uma conversa, muitos dos meus amigos estão mortos, passei toda a vida a escrever. Que é que vou fazer senão isso?" E num resumo de sua vida e de sua glória:" Comecei, como todos os jovens escritores, por ser um gênio, agora resigno-me a ser Borges."
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Josué Montello - Diário Completo (VolumeII), p. 311
VEM SENTAR-TE comigo, Lídia, à beira do rio. Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas. (Enlacemos as mãos.) .
Depois pensemos, crianças adultas, que a vida Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa, Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado, Mais longe que os deuses. .
Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos. Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio. Mais vale saber passar silenciosamente E sem desassossegos grandes.
. Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz, Nem invejas que dão movimento demais aos olhos, Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria, E sempre iria ter ao mar. .
Amemo-nos tranqüilamente, pensando que podíamos, Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias, Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro Ouvindo correr o rio e vendo-o. .
Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as No colo, e que o seu perfume suavize o momento - Este momento em que sossegadamente não cremos em nada, Pagãos inocentes da decadência. .
Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova, Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos Nem fomos mais do que crianças. .
E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio, Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti. Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim - à beira-rio, Pagã triste e com flores no regaço.
. Ricardo Reis ( Fernando Pessoa in «Obra poética», Editora Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1986, p. 256-257 )
Antigamente escreviam-se cartas que seguiam pela mala postal do próximo vapor. Quando era muito urgente telegrafava-se.
Antigamente os sentimentos cumpriam o horários dos paquetes, dos comboios, dos correios.
Antigamente a hora de chegada do carteiro era o momento mais ansiado, mais odiado do dia.
Antigamente o abrir de um envelope era o instante do aperto do coração.
Antigamente escrevia-se em papel de carta muito fino para cada missiva não pesar mais, às vezes aproveitando o verso e o reverso da ténue folhinha.
Antigamente os que não escreviam, aproveitavam um canto final do que estava livre para acrescentarem os beijinhos, os abraços, os xis, as recomendações de todos os que se associavam de modo breve ao acto de se ter escrito.
Antigamente algumas cartas traziam fotografias, sujeitas à curiosidade, outras notas de banco escondidas, com risco de extravio.
Antigamente havia cartas perfumadas, cartas tarjadas de negro, cartas comerciais com facturas e outros efeitos na praça.
Hoje temos a internet e com ela o estarmos instantaneamente a toda a hora e por toda a forma em todo o lado.
Quando a rede falha e estamos longe, sentimo-nos abandonados à nossa sorte. Nem um aerograma, ao menos, em correio aéreo, nós por cá todos bem, saudades à mamã, à Xica e aos meninos...
Passamos pelas coisas sem as ver, gastos, como animais envelhecidos: se alguém chama por nós não respondemos, se alguém nos pede amor não estremecemos, como frutos de sombra sem sabor, vamos caindo ao chão, apodrecidos.
. escrever um poema é ser assaltado e manter o sangue frio . ou fazê-lo ferver, borbulhar e correr nas frias treliças metálicas do concreto armado . escrever um poema é costurar gotas de suor ou lágrimas tecer longa colcha de ondas sobre sonhos profundos . ou subir na espiral dos sons de uma escada cujos degraus são as notas de uma canção oca e ascender através das nuvens evaporadas rumo ao sol ao céu ao nada . Lucas Nicolato, in Promessas Provisórias
Depois de passar dois meses tentando reencontrar lugares da minha infância no interior de São Paulo, voltei. A possibilidade do reencontro é conversa para uma outra postagem.