Pintura de Alberto da Veiga Guignard
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Acabei de comprar o novo livro de MANUEL BANDEIRA : Crônicas inéditas I . Vou compartilhar com vocês o prazer da minha leitura:
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MURILO MENDES
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Haverá já lugar para as Musas nesta republica revolucionária ? ( Descansem os chefes de serviços públicos, não estou pedindo emprego para elas, sei bem que o famoso bonde vendido por Minas ao Rio Grande do Sul já vai com a tabuleta de LOTAÇÃO COMPLETA e leva mais gente que um trem de subúrbio da Central, às seis da tarde.)
Há sempre lugar para as Musas, fora, bem entendido, das repartições públicas. Mesmo quando os poemas não aparecem, elas andam como agora recolhendo matéria-prima das mais ricas para os poemas futuros. Os mais extraordinário, porém, é que um poeta esquisitíssimo escolheu este momento de barafunda para surpreender a gente com a sua poesia, revolucionária também, porque nela se prova um sabor de forte vida de instintos misturado à quintessência das metafísicas mais arrojadamente líricas ( Poemas editado em Juiz de Fora, na ocasião em que a mineirada desembestou a invadir São Paulo, Bahia, Goiás, Espírito Santo e estado do Rio).
Embora estes versos não falem da revolução, pode-se relacionar desde logo o poeta com ela e de maneira que o define imediatamente, citando o seu último poema inédito, o qual pertence àquele gênero que o Mário de Andrade denominou com muita graça de poemas-piadas. Ei-lo:
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A maior batalha da América do Sul
Não houve
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Este poema é uma delícia, porque dá bem idéia de uma cousa que o Jaime Ovalle descobriu e que por sua vez é também poema (decididamente os poemas estão batendo chifre de todos os lados): o Brasil é porque ainda não existe...
Os paulistas devem conhecer Murilo Mendes através da declamação de Eugênia Álvaro Moreyra, que tem incluído nos seus recitais a gozadíssima “Biografia do músico”, uma das mais perfeitas réussites de Murilo.
Mas na “Biografia do músico” está apenas uma das faces do poeta, a sua capacidade de observação e sátira, o seu humour a par da aptidão para aproveitar a riqueza poética expressiva do calão; Muriel, o quarto arcanjo, dá pinotes mais danados quando lhe bate o desânimo dos empregadinhos de banco ou de inquilino das pensõezinhas burguesas de Botafogo.
Então ele sobe alto, evolui em distâncias astronômicas, estrelas e palavras petecam em suas mãos de demiurgo às avessas destruidor de mundos desinteressantes e ingratos:
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Desaparece, gravura de primeira comunhão,
Some, primeiro olhar da namorada,
Corpo da prostituta da cidade sibilante,
Noite do crime, vida do amor, sombra do santo!
Desaparece,
Anjo da criação anterior,
Manequim da nebulosa vermelha ardendo no quarto de febre,
Vestido e sombra da mulher enorme e primitiva me tomando nos braços,
Apaga-te , mão de Deus me formando na manhã resplandecente,
Som, movimento, vontade, tempo, energia, desaparecei.
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Eu devia ter citado na íntegra esse “Canto do desânimo”, que é na verdade um dos mais fortes e belos poemas de agora. Há nele, de palavra a palavra, uma constante invenção de realidades líricas substituindo-se a tudo que o poeta destrói ou manda desaparecer na sua raiva de desanimado. E que jogo verbal possante em cada voz ou articulação.
Em muitos poemas de Murilo reflete-se, não sei se influência ou fruto de afinidade, um pouco daquele mundo estranho de Cícero Dias, como se o poeta quisesse dar-nos uma réplica literária ao lirismo plástico do pintor pernambucano. Sinto isso especialmente nos versos tão curiosamente intitulados “ Corte transversal do poema”. Em Murilo Mendes os cortes transversais são freqüentes.
Já citei um título curioso. O livrinho está cheio deles, porque os poemas começam muitas vezes desde o título: “Sonata sem luar quase uma fantasia”, um grupo de poemas forma mesmo um aparelho complicadíssimo que o poeta denominou “Máquina de sofrer”. E esse sofrer o que é? No caso de Murilo Mendes parece que é, com a obsessão de ancas, sovacos e outras sensualidades, um desejo desesperado, e impotente, para se liberar “ do mundo das formas”.
Mas enquanto não se dissipa esse mundo interposto entre o seu espírito e a eternidade, Murilo é um homem “que anda no ar”, que é, para felicidade nossa e talvez desinfelicidade dele, o ar do Brasil.
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Manuel Bandeira - Crônicas inéditas I . Editora Cosac Naify , p. 384-387
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MURILO MENDES
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Haverá já lugar para as Musas nesta republica revolucionária ? ( Descansem os chefes de serviços públicos, não estou pedindo emprego para elas, sei bem que o famoso bonde vendido por Minas ao Rio Grande do Sul já vai com a tabuleta de LOTAÇÃO COMPLETA e leva mais gente que um trem de subúrbio da Central, às seis da tarde.)
Há sempre lugar para as Musas, fora, bem entendido, das repartições públicas. Mesmo quando os poemas não aparecem, elas andam como agora recolhendo matéria-prima das mais ricas para os poemas futuros. Os mais extraordinário, porém, é que um poeta esquisitíssimo escolheu este momento de barafunda para surpreender a gente com a sua poesia, revolucionária também, porque nela se prova um sabor de forte vida de instintos misturado à quintessência das metafísicas mais arrojadamente líricas ( Poemas editado em Juiz de Fora, na ocasião em que a mineirada desembestou a invadir São Paulo, Bahia, Goiás, Espírito Santo e estado do Rio).
Embora estes versos não falem da revolução, pode-se relacionar desde logo o poeta com ela e de maneira que o define imediatamente, citando o seu último poema inédito, o qual pertence àquele gênero que o Mário de Andrade denominou com muita graça de poemas-piadas. Ei-lo:
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A maior batalha da América do Sul
Não houve
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Este poema é uma delícia, porque dá bem idéia de uma cousa que o Jaime Ovalle descobriu e que por sua vez é também poema (decididamente os poemas estão batendo chifre de todos os lados): o Brasil é porque ainda não existe...
Os paulistas devem conhecer Murilo Mendes através da declamação de Eugênia Álvaro Moreyra, que tem incluído nos seus recitais a gozadíssima “Biografia do músico”, uma das mais perfeitas réussites de Murilo.
Mas na “Biografia do músico” está apenas uma das faces do poeta, a sua capacidade de observação e sátira, o seu humour a par da aptidão para aproveitar a riqueza poética expressiva do calão; Muriel, o quarto arcanjo, dá pinotes mais danados quando lhe bate o desânimo dos empregadinhos de banco ou de inquilino das pensõezinhas burguesas de Botafogo.
Então ele sobe alto, evolui em distâncias astronômicas, estrelas e palavras petecam em suas mãos de demiurgo às avessas destruidor de mundos desinteressantes e ingratos:
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Desaparece, gravura de primeira comunhão,
Some, primeiro olhar da namorada,
Corpo da prostituta da cidade sibilante,
Noite do crime, vida do amor, sombra do santo!
Desaparece,
Anjo da criação anterior,
Manequim da nebulosa vermelha ardendo no quarto de febre,
Vestido e sombra da mulher enorme e primitiva me tomando nos braços,
Apaga-te , mão de Deus me formando na manhã resplandecente,
Som, movimento, vontade, tempo, energia, desaparecei.
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Eu devia ter citado na íntegra esse “Canto do desânimo”, que é na verdade um dos mais fortes e belos poemas de agora. Há nele, de palavra a palavra, uma constante invenção de realidades líricas substituindo-se a tudo que o poeta destrói ou manda desaparecer na sua raiva de desanimado. E que jogo verbal possante em cada voz ou articulação.
Em muitos poemas de Murilo reflete-se, não sei se influência ou fruto de afinidade, um pouco daquele mundo estranho de Cícero Dias, como se o poeta quisesse dar-nos uma réplica literária ao lirismo plástico do pintor pernambucano. Sinto isso especialmente nos versos tão curiosamente intitulados “ Corte transversal do poema”. Em Murilo Mendes os cortes transversais são freqüentes.
Já citei um título curioso. O livrinho está cheio deles, porque os poemas começam muitas vezes desde o título: “Sonata sem luar quase uma fantasia”, um grupo de poemas forma mesmo um aparelho complicadíssimo que o poeta denominou “Máquina de sofrer”. E esse sofrer o que é? No caso de Murilo Mendes parece que é, com a obsessão de ancas, sovacos e outras sensualidades, um desejo desesperado, e impotente, para se liberar “ do mundo das formas”.
Mas enquanto não se dissipa esse mundo interposto entre o seu espírito e a eternidade, Murilo é um homem “que anda no ar”, que é, para felicidade nossa e talvez desinfelicidade dele, o ar do Brasil.
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Manuel Bandeira - Crônicas inéditas I . Editora Cosac Naify , p. 384-387
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3 comentários:
Obrigada por compartilhar, socializar suas leituras. Bom domingo!!!
Gostei da forma que você escreve as tuas poesias,elas são lindas.
Gislaine Riachuelo
O tempo passa,mas a poesia permanece e Murilo Mendes nos faz refletir se somos eternos amantes!!!Gisi Riachuelo
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