Dona Carolina nos comunicou um dia, ao chegarmos à sala de aula:
- Amanhã teremos dois coleguinhas novos. São dois meninos recém-chegados de Portugal. Eles ainda não sabem falar direito a nossa língua, mas são meninos inteligentes e educados. Eu peço a vocês, por favor, que não caçoem; eles têm um sotaque carregado, falam muito engraçado, mas a gente precisa ter educação.
Levou tempo na recomendação, deu alguns exemplos sobre cordialidade e boas maneiras. Bateu tanto na tecla da polidez que acabamos – toda a classe- na maior curiosidade de conhecer as duas aves raras.
No dia seguinte, como havia anunciado, apareceram os dois irmãozinhos, Alberto e Domingos Carvalho da Silva. Muito encabulados com tantos olhos a devorá-los, foram se ambientando aos poucos. Eu não ri nem uma vez deles, embora achasse graça de sua maneira de falar. Fiquei contente de entender quase tudo o que diziam.
Um belo dia, na hora dos recitativos, dona Carolina perguntou aos irmãos Carvalho da Silva se sabiam recitar. Domingos declarou que sim e até que, “por acaso”, conhecia uma poesia muito bonita.
No meio da sala, o menino deu um verdadeiro show de declamação! O poema referia-se a um analfabeto que havia recebido uma carta e aflito fazia conjecturas sobre o conteúdo da mesma; seria da mãe ausente? Teria ela morrido?... Domingos gesticulava, suava, chegou a chorar de emoção, parecia que tudo o que os versos diziam era realidade. Extasiada diante de tão grande artista, senti-me, ao mesmo tempo, arrasada e encantada. Daí por diante eu, que até então era arroz-de-festa, a tal nos recitativos e gestos, passei para a sombra de Domingos Carvalho da Silva.
Os dois irmãos não ficaram muito tempo nessa escola e sumiram de minha vista. Encontrei Domingos, muitos anos mais tarde, não o famoso declamador que eu supunha ele viria a ser, mas como poeta, ótimo poeta. Quanto a Alberto, é hoje cientista conhecido.
Zélia Gattai. Anarquistas, Graças a Deus. Editora Record, p.191-192
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Alberto Carvalho da Silva, cursou medicina, ciências sociais, filosofia, matemática e química.“Nos anos 40, fez-se pesquisador em fisiologia, dedicando-se aos aspectos bioquímicos e metabólicos da nutrição. Nos anos 50 e 60 esteve ligado à criação da Associação de Auxiliares de Ensino — semente da Associação de Docentes da Universidade de São Paulo (Adusp) — e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), de que veio a se tornar diretor científico em 1968”
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Minha atenção durante a leitura foi toda dirigida para o “menino declamador”. Só depois percebi que esse Domingos, era Domingos Carvalho da Silva, membro da Academia Paulista de Letras, membro da Comissão Estadual de Literatura, membro fundador e presidente da Academia Brasiliense de Letras, o principal porta-voz da Geração de 45.
Essa sua habilidade em recitar poemas que deixou Zélia encantada, foi lembrada em muitas ocasiões. José Pastore, por exemplo, quando sucedeu Domingos na Academia Paulista de Letras, destacou em seu discurso, justamente o prazer ele tinha em recitar poemas de Castro Alves, Raimundo Correa e Olavo Bilac nas festas do seu Grupo Escolar.
Um menino declamador que amava a poesia, que se tornou poeta e que não perdeu com os anos o amor pela poesia e pelo ofício de poeta:
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Este grave ofício de poeta
Que exerço enquanto o tempo vai
Dando mais terra à minha sombra,
Não o aprendi com meu pai.
Este meu álibi de cantar
Para ausentar-me do que sou,
De minha mãe não o herdou
O filho rebelde e sem lar.
Este ritmo que celebrei
No contraponto da viola,
Jamais aprendi na escola
E a mim mesmo ensinei.
Sou inventor do que sou
E, embora neto de avós,
Tenho de próprio a minha voz,
bússola do Norte aonde vou.
Quero a poesia em essência
Abrindo as asas incólumes.
Boêmia, perdida ou tísica,
Viva ou morta, amo a poesia.
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Que delícia ter encontrado nas doces recordações de Zélia Gattai esse menino Domingos, não resisto, mais um verso:
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Quero a palavra fluente,
viva e inquieta como o sangue.
Pura ou impura eu reclamo
a poesia do momento,
filtrada exata constante.
(em Rosa extinta -1945)
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Para encerrar, um convite:
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"correi o mundo e procurai palavras novas para um poema"
(Praia oculta (1949) em “A rosa irrevelada”)
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6 comentários:
Leonor você fez uma superpesquisa. Há muito tempo eu li esse livre, mas nem lembrava mais dessa história. Quanto ao seu doce comentário no blog, obrigada. É eu vi muitas coisas tristes no Brasil e em Filipinas, tudo ao vivo e a cores. Alguns anos atrás não parciam me afetar, mas agora, não sei se é a idade ou a condição de expatriada, ando meio sensível demais. Mas esse trabalho tem algumas alegrias também. Apesar de poucas...mas é isso mesmo. Um abraço.
Nunca li nada de Zélia Gattai... preciso ler! Eu também tive dois coleguinhas (namoradinhos?) portugueses quando estava nos primeiros anos da escola. Albino e Manoel, cada um mais bonito que o outro. Mas que falavam "estranho", isso lá é verdade!
Adorei essa postagem, está muito caprichada! Bjs. mil!
p.s. vc está muito quietinha!
pega o trem bala rsrs
Leonor, muito gostoso ver estes personagens importantes envolvidos neste episódio infantil cheia de poesia em todos os sentidos.
Um grande beijo.
Achei esse texto rico, culturalmente maravilhoso. Se vc autorizar, gostaria de publicá-lo lá no Compartilhando as Letras, com os devidos créditos. A Evelyn vai te mandar um email, falei com ela hoje.Passe lá no meu Espaço, têm Post novo.Beijos.
Roseane,
É assim mesmo, em cada releitura percebemos algo novo.
Quanto ao seu trabalho, sempre existirá uma nova alegria para iluminar a sua caminhada.
bjs!
Dalva,
É sempre bom recordar momentos da nossa infância.
Acho que você vai gostar de ler "Anarquistas, graças a Deus " .
Grande abraço!
Renata,
Não estou quietinha, estou é atarefada .... (rsrsrs)
Mil beijinhos!!!!
Maria Augusta,
Também achei esse episódio muito interessante. O que eu mais gostei foi poder encontrar os poemas do menino Alberto Carvalho da Silva.
Grande abraço!
Sônia,
É claro que você pode utilizar a postagem em seu blog.
BJS para você e para a Evelyn!
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