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TRÊS parceiros, meus amigos para sempre...
A amizade com Hélio Pellegrino começou no Jardim de Infância em Belo Horizonte, ambos com seis anos de idade. Depois fomos colegas de grupo escolar e de ginásio. Embora ele tenha ido então estudar Medicina e eu Direito, continuamos amigos a vida inteira, conforme narrei no livro “O Tabuleiro de Damas”.
Com Otto Lara Resende, o primeiro encontro foi na adolescência, em casa de João Etienne Filho, do jornal católico O Diário, que nos emprestava livros. Otto me revelaria mais tarde que ficou impressionado comigo porque eu conhecia marcas de automóvel, era campeão de natação e só falava futilidades. Já havíamos estado juntos anos antes: foi no meu tempo de escoteiro. Ele também era escoteiro em São João Del Rei, e veio numa delegação a Belo Horizonte nos visitar. Na sede da nossa Associação havia um fio elétrico desencapado junto ao soalho: a brincadeira era pisar onde dava choque e passar o choque para quem nos segurasse a mão. Otto costumava dizer que levou a vida inteira tentando lhe dar esse choque... Passamos a nos ver quase toda noite na Folha de Minas, onde eu já trabalhava, ou nos bares vizinhos, juntamente com o Hélio, de quem ele também se tornara amigo. Logo o Paulo se juntava a nós.
A primeira vez que vi Paulo Mendes Campos foi na varanda da casa do cônsul inglês, durante uma festa em que havia entrado de penetra (provavelmente ele também) para namorar uma menina. Eu já havia reparado naquele rapazinho de cabelo caído na testa, que passava o tempo todo de lá para cá na varanda onde estávamos (se não me engano já meio triscado), empatando o nosso namoro. Acabamos os dois iniciando ali mesmo uma discussão sobre literatura, cada um querendo mostrar mais conhecimento que o outro, para impressionar a menina. Um de nós (como já tive ocasião de contar, sem revelar qual dos dois para não ser deselegante) sustentava que Dom Quixote era escrito em versos.
Ficamos amigos, e a discussão, como o choque no Otto, se estendeu pela vida afora (não sobre Dom Quixote, é claro).
Andávamos dia e noite juntos, os quatro (ou três, para falar mal do ausente), conversando sem parar – éramos o que se poderia chamar de peripatéticos. Havia um banco na Praça da Liberdade, o nosso banco, onde invariavelmente encerrávamos a noite, às vezes já nascendo o dia. Era ali que “puxávamos angústia”, espécie de ritual daquilo que chamávamos, parodiando Unamuno, de “sentimiento trágico de la vida”
Nossos sentimentos não diferiam dos que nos podiam inspirar outros amigos. A singularidade talvez estivesse na espontânea convivência diária em Belo Horizonte e depois no Rio (com viagens de permeio) durante cerca de cinqüenta anos. Uma convivência nem sempre muito tranqüila - às vezes sujeita a chuvas e trovoadas. Mas ao longo da vida me dei bem igualmente com todos os três, cada um a seu jeito. Hélio, o apaixonado, o possuído, o destemperado – eu, mais contido e organizado, mas ao mesmo tempo desastrado e obsessivo (ou obsedeque, na linguagem pellegrinesca). Paulo, arisco, enigmático, reflexivo – eu, mais solto aberto, desabusado. Otto, indeciso, pessimista, deprimido – eu, extrovertido, otimista, intempestivo. Tínhamos pouca coisa em comum, além da paixão literária. E do senso de humor.
O meu otimismo um tanto exacerbado costumava provocar reações, principalmente face ao pessimismo declarado do Otto. Vivíamos todos em estado quase permanente de discussão. Discutíamos tudo, não importava o tema : da Nova República à Assunção de Nossa Senhora. Discussões tão acaloradas que mais de uma vez aconteceu trocarmos de lado só para continuar a discutir:
- O que você está dizendo é uma bobagem . Vou mostrar como devia defender o seu ponto de vista.
-Pois então mostre, que eu mostro o seu ...
Com isso a discussão jamais teria fim. Mas se me perguntem “E vocês se entendiam?”, eu diria que sim. Embora as divergências fossem fundamentais. Éramos sempre implacáveis, por exemplo, no julgamento da produção literária de cada um. E acredito que esse rigor crítico nos foi extremamente valioso: impediu que a gente escrevesse muita bobagem.
(Ou não impediu...)
Rebeldes, inconformados, nos insurgíamos contra a ordem constituída e tudo que representasse instituição, fosse a direção do Colégio , o Governo, a Cúria Metropolitana. Uns mais, outros menos, éramos católicos. Todo ano fazíamos a Páscoa dos Militares, recebendo Comunhão no meio deles. Por que dos militares? Idéia do Hélio – talvez para desafiar os donos do poder, que não podiam nos impedir.
Cada um evoluiu a seu jeito. Houve época em que Paulo andou tangenciando o Partido Comunista – talvez fosse apenas agnóstico. Hélio foi militante do PT – em matéria de fé, sempre era uma convulsão da natureza: reivindicava a aceitação do dogma da ressurreição da carne como postulado do seu Partido. Otto, voltado para um catolicismo mais vivenciado espiritualmente – nenhum de nós no fundo perdeu a fé, que eu saiba.
O que predominava mesmo vinha a ser a irreverência... Éramos intransigentemente contra as convenções e conveniências, a começar pela institucionalização de nossa amizade. Tanto assim que nunca conseguimos como amigos fazer juntos nada de útil, com a graça de Deus. Nunca fomos sócios em coisa alguma. Sempre fizemos questão de não tirar proveito de nossa tão espontânea amizade.
Deu trabalho a revisão destas cartas, já meio esfrangalhadas de tão antigas. Trabalho insano, tão somente justificado pela insanidade do remetente (e por extensão dos destinatários). Haja vista o tom descontraído do texto em geral, com as suas incorreções, distrações, distorções, repetições, contradições, alguns palavrões e outros senões. Ainda assim (ou por isso mesmo), é possível que o conteúdo da minha correspondência a eles dirigida ao longo de tantos anos dê pelo menos uma pálida idéia de como a relação que nos unia foi fundamental para cada um de nós.
Para mim, pelo menos. Posso mesmo afirmar que, se eu não tivesse conseguido fazer mais nada na vida, esta amizade tão intensa, duradoura e valiosa, já teria sido o melhor que eu poderia desejar.
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A amizade com Hélio Pellegrino começou no Jardim de Infância em Belo Horizonte, ambos com seis anos de idade. Depois fomos colegas de grupo escolar e de ginásio. Embora ele tenha ido então estudar Medicina e eu Direito, continuamos amigos a vida inteira, conforme narrei no livro “O Tabuleiro de Damas”.
Com Otto Lara Resende, o primeiro encontro foi na adolescência, em casa de João Etienne Filho, do jornal católico O Diário, que nos emprestava livros. Otto me revelaria mais tarde que ficou impressionado comigo porque eu conhecia marcas de automóvel, era campeão de natação e só falava futilidades. Já havíamos estado juntos anos antes: foi no meu tempo de escoteiro. Ele também era escoteiro em São João Del Rei, e veio numa delegação a Belo Horizonte nos visitar. Na sede da nossa Associação havia um fio elétrico desencapado junto ao soalho: a brincadeira era pisar onde dava choque e passar o choque para quem nos segurasse a mão. Otto costumava dizer que levou a vida inteira tentando lhe dar esse choque... Passamos a nos ver quase toda noite na Folha de Minas, onde eu já trabalhava, ou nos bares vizinhos, juntamente com o Hélio, de quem ele também se tornara amigo. Logo o Paulo se juntava a nós.
A primeira vez que vi Paulo Mendes Campos foi na varanda da casa do cônsul inglês, durante uma festa em que havia entrado de penetra (provavelmente ele também) para namorar uma menina. Eu já havia reparado naquele rapazinho de cabelo caído na testa, que passava o tempo todo de lá para cá na varanda onde estávamos (se não me engano já meio triscado), empatando o nosso namoro. Acabamos os dois iniciando ali mesmo uma discussão sobre literatura, cada um querendo mostrar mais conhecimento que o outro, para impressionar a menina. Um de nós (como já tive ocasião de contar, sem revelar qual dos dois para não ser deselegante) sustentava que Dom Quixote era escrito em versos.
Ficamos amigos, e a discussão, como o choque no Otto, se estendeu pela vida afora (não sobre Dom Quixote, é claro).
Andávamos dia e noite juntos, os quatro (ou três, para falar mal do ausente), conversando sem parar – éramos o que se poderia chamar de peripatéticos. Havia um banco na Praça da Liberdade, o nosso banco, onde invariavelmente encerrávamos a noite, às vezes já nascendo o dia. Era ali que “puxávamos angústia”, espécie de ritual daquilo que chamávamos, parodiando Unamuno, de “sentimiento trágico de la vida”
Nossos sentimentos não diferiam dos que nos podiam inspirar outros amigos. A singularidade talvez estivesse na espontânea convivência diária em Belo Horizonte e depois no Rio (com viagens de permeio) durante cerca de cinqüenta anos. Uma convivência nem sempre muito tranqüila - às vezes sujeita a chuvas e trovoadas. Mas ao longo da vida me dei bem igualmente com todos os três, cada um a seu jeito. Hélio, o apaixonado, o possuído, o destemperado – eu, mais contido e organizado, mas ao mesmo tempo desastrado e obsessivo (ou obsedeque, na linguagem pellegrinesca). Paulo, arisco, enigmático, reflexivo – eu, mais solto aberto, desabusado. Otto, indeciso, pessimista, deprimido – eu, extrovertido, otimista, intempestivo. Tínhamos pouca coisa em comum, além da paixão literária. E do senso de humor.
O meu otimismo um tanto exacerbado costumava provocar reações, principalmente face ao pessimismo declarado do Otto. Vivíamos todos em estado quase permanente de discussão. Discutíamos tudo, não importava o tema : da Nova República à Assunção de Nossa Senhora. Discussões tão acaloradas que mais de uma vez aconteceu trocarmos de lado só para continuar a discutir:
- O que você está dizendo é uma bobagem . Vou mostrar como devia defender o seu ponto de vista.
-Pois então mostre, que eu mostro o seu ...
Com isso a discussão jamais teria fim. Mas se me perguntem “E vocês se entendiam?”, eu diria que sim. Embora as divergências fossem fundamentais. Éramos sempre implacáveis, por exemplo, no julgamento da produção literária de cada um. E acredito que esse rigor crítico nos foi extremamente valioso: impediu que a gente escrevesse muita bobagem.
(Ou não impediu...)
Rebeldes, inconformados, nos insurgíamos contra a ordem constituída e tudo que representasse instituição, fosse a direção do Colégio , o Governo, a Cúria Metropolitana. Uns mais, outros menos, éramos católicos. Todo ano fazíamos a Páscoa dos Militares, recebendo Comunhão no meio deles. Por que dos militares? Idéia do Hélio – talvez para desafiar os donos do poder, que não podiam nos impedir.
Cada um evoluiu a seu jeito. Houve época em que Paulo andou tangenciando o Partido Comunista – talvez fosse apenas agnóstico. Hélio foi militante do PT – em matéria de fé, sempre era uma convulsão da natureza: reivindicava a aceitação do dogma da ressurreição da carne como postulado do seu Partido. Otto, voltado para um catolicismo mais vivenciado espiritualmente – nenhum de nós no fundo perdeu a fé, que eu saiba.
O que predominava mesmo vinha a ser a irreverência... Éramos intransigentemente contra as convenções e conveniências, a começar pela institucionalização de nossa amizade. Tanto assim que nunca conseguimos como amigos fazer juntos nada de útil, com a graça de Deus. Nunca fomos sócios em coisa alguma. Sempre fizemos questão de não tirar proveito de nossa tão espontânea amizade.
Deu trabalho a revisão destas cartas, já meio esfrangalhadas de tão antigas. Trabalho insano, tão somente justificado pela insanidade do remetente (e por extensão dos destinatários). Haja vista o tom descontraído do texto em geral, com as suas incorreções, distrações, distorções, repetições, contradições, alguns palavrões e outros senões. Ainda assim (ou por isso mesmo), é possível que o conteúdo da minha correspondência a eles dirigida ao longo de tantos anos dê pelo menos uma pálida idéia de como a relação que nos unia foi fundamental para cada um de nós.
Para mim, pelo menos. Posso mesmo afirmar que, se eu não tivesse conseguido fazer mais nada na vida, esta amizade tão intensa, duradoura e valiosa, já teria sido o melhor que eu poderia desejar.
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Fernando Sabino - CARTAS NA MESA - Editora Record
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2 comentários:
Querida amiga Leonor,você, como sempre, arrasa.
Muito feliz a seleção desse texto do Sabino.
Parabéns! Amei...
bjs
Querida amiga, obrigada pela visita. Sempre acompanhei a amizade
desses quatro de perto. Gostava muito do Hélio, ele paraninfou a minha turma de psicologia. BJS
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